segunda-feira, 11 de julho de 2011

Ficamos os Maus

UM SONHO.
Um menino escreve sobre ele para mim, diretamente de seu futuro impiedoso. Foi a forma que encontrei para descrever o mundo sonhado. O título... Os bons já se foram, pois só sendo mau para ficar para trás nesse inferno.
Dias de sol de 70 graus, noites de blocos de gelo caindo do céu e a vida de pessoas num mundo pós apocalipse climático.
Se quiser ouvir com o som de Dave Matthews Band - You & Me, aconselho.Sei que é de novela, mas o personagem gostaria. 

Ficamos os Maus


Escrevendo no Escuro

Estou começando bem na hora em que tudo parece ter terminado.


Não é fácil escrever, pois conheço poucas palavras que sei escrever bem. Muitas outras nem conheço e não vou tentar escrever para não ficar engraçado e bem no fim não ser levado a sério.

Falo sempre com o pai e pergunto as coisas. Um dia ele se encheu, eu acho, e me mandou aprender escrevendo. Disse: não tinha me ensinado à toa a ler direitinho e escrever bem certo. E não era só para ler as receitas de remédio e os manuais de fazer as coisas funcionarem de novo. Era para escrever também.

O pai sempre me olha quase chorando quando eu estou fazendo alguma coisa inteligente, tipo uma armadilha de rato ou vinho de cogumelo. Diz: ninguém deve ir atrás de coisas prontas e sempre devemos fazer as coisas das quais precisamos.

Então vou escrever para entender. E quem sabe alguém um dia não lê essas palavras e diz olha como esse menino escreve bem e nem nunca foi numa escola, o lugar aonde as crianças iam para aprender quando o mundo era mais calminho.

Pois vivo nesse mundo nervoso hoje. O pai disse: nem sempre foi assim. Antes chovia um pouquinho e raramente muito. O calor era motivo para tomar banho no rio e beber coisas geladas e não para se esconder no fundo da terra. Não sei como pode a chuva chegar e alagar tudo, arrastar e destruir. O pai diz: é porque é o mundo dos extremos, frio de 50 e calor de 50. Seca de pegar fogo na pedra e água de arrasar montanha.

Se o pai me ensinou a tirar o nariz para fora do buraco nos poucos dias entre o frio de matar e o calor de matar, para procurar metal e outras coisas, me ensinou a escolher o que posso comer e a fazer um monte de coisas para continuar vivo, a mãe me ensinou a ter muita raiva. Ela é bem dura. Diz: as pessoas são como uma doença que se espalhou por tudo como uma praga. Tinha cidade ligada com cidade por cicatrizes na cara do planeta. As pessoas eram loucas antigamente e arrebentaram com tudo. Como podiam ter acabado com um planeta desse tamanho? Só sendo uma praga para matar a Terra inteira! Ela grita. O pai nunca disse uma palavra e quando ela fica assim muito nervosa, eles vão lá num canto e acabam chorando baixinho depois de conversar bastante. O pai diz não ser nada, ela só tem muita saudade de antigamente.

Eu falo muito do pai é porque ele é o meio de tudo. O centro de tudo é melhor de dizer. Qualquer coisa ele sabe, qualquer coisa ele dá um jeito e faz. Quer ver ele feliz, é quando termina uma máquina ou tira do forno uma comida, inventando mais uma receita com cogumelos. Só fica mais feliz quando a gente faz alguma coisa nunca ensinada por ele e mesmo assim a gente fez. Não, espere, tem uma outra coisa que deixa ele brilhando no buraco escuro de tanta alegria. É quando conta as estórias lidas quando era mais novo e ainda tinha livro para ler que ainda não tinha ido para o forno fazer comida. Então vou falar do pai muitas vezes, da mãe e de meu irmão Vitor, os bravos sobreviventes do buraco mais organizado do planeta.

Mas foi a mãe quem me contou direito com viemos parar no buraco. O mundo já andava meio doente de tanta poluição do ar. Havia estações de frio, calor, chuva e seca e tudo tão gostoso e bom quando mudava um pouquinho só. Mas o mundo foi ficando cada vez mais sujo e com menos natureza, começou a chover demais, ter seca demais, mais quente a cada ano e mais frio também no inverno. Os extremos do pai. Até que dava para arrumar o mundo, mas houve alguma coisa como um desastre grande ou guerras com armas atômicas e acabaram com o mundo. O mundo podia aguentar se não estivesse meio doente, disse o pai.

O que aconteceu? O pai acha que foi um vulcão e escureceu o sol, a mãe acha que foi uma guerra atômica e mexeu com a temperatura já delicada. Isso porque o pai é do jeito mais sonhador e a mãe é do jeito dela mesmo.

Perguntei se tinha mais gente no mundo. Ela achava que sim. Dizia: tinha muita gente que havia construído máquinas de viajar para fora do mundo, as naves especiais, e que as pessoas que tinham muito poder e muito dinheiro tinham ido embora. Quando o pai disse que não tinha nenhum lugar para ir no espaço ela disse que achava que esses homens podiam ter construído lugares para viver no alto das montanhas mais altas. De todo jeito, só aqueles que tinham condições estavam vivendo bem. Esse assunto me deixa nervoso, aí escrevo que para cá, que para lá, um monte de que.

O pai disse que tudo isso é só uma pegadinha de Deus para se livrar dos políticos que podem mandar e dos milionários que podem pagar. Não sei o que é pegadinha e não sei quem é Deus, nem o que é milionário. Só sei que político não é coisa boa. Mas o pai se divertiu quando falou.

Aí foi quando a mãe disse que o pai gostava desse mundo como ele é. Viver de sobreviver cada dia, lutando contra tudo e fazendo tudo do jeito dele. Ele não servia mesmo para o mundo de antigamente. Muito antes do mundo virar uma porcaria, o pai sempre guardava ferramentas, comidas e outras coisas necessárias para sobreviver.Trabalhava sozinho, não sabia obedecer nem mandar, desprezava a autoridade e fazia ele mesmo com muito mais trabalho o que podia comprar barato num supermarcado. Nem tive tempo de perguntar o que é isso e o pai veio com seu poema.

O pai vive dizendo um poema que ele sabe de cabeça sem precisar olhar em um livro para dizer bem certinho. Serve para quase tudo, como se fosse um pé de cabra de um metro. Começa com ser ou não ser e ele fala até chegar na parte que ele acha que serve para aquela hora. Como sempre a mãe escuta meio sorrindo.

Amanhã será a minha primeira vez de ir com o pai lá para fora. Agora que meu braço já está do tamanho da lâmina da espada, posso acompanhar o pai e os outros homens. Vamos aproveitar que o tempo não está de matar e vamos procurar material que precisamos aqui em baixo. Vai ser a primeira vez do pai depois de muito tempo. O barulhinho da mina de água de nosso buraco está me dando vontade de dormir.



De volta



Não sei como, mas estou aqui de novo. Achei que nunca mais ia voltar a escrever bobagens aqui no meu cantinho no buraco.


Sair do buraco já não foi fácil. Primeiro, vestimos roupas grossas, com luvas, botas de borracha e uma máscara com apenas dois buracos para os olhos. O sol lá fora não é só quente, é mortal. Se pegar um pouco que seja na pele, vai deixar feridas. Nunca cicatrizam e se espalham por todo o corpo. Então é preciso cuidar. Depois de vestidos, abrimos a porta e pusemos a escada para subir até o teto do buraco e subir por uma outra escada comprida por um túnel umas cinco vezes a minha altura e tão estreito que quase não dava para dobrar a perna para subir o próximo degrau. O pai foi primeiro e eu fui logo atrás, levando a corda. Quando o pai chegou no final e abriu a porta redonda de ferro, senti a corrente de ar quente como um soco na cara e a luz entrou tão forte que fez meus olhos doerem antes de poder fechar com força. Mesmo fechados, via a luz atravessando a pele. O pai mandou ficar de olho fechado até sair.

Tateando como se ainda estivesse lá embaixo, senti o pai me puxando e saí para fora. O ar estava quente como fogo entrando pelo nariz e fiquei com medo de sufocar. O pai pôs os óculos sobre a máscara e me mandou abrir os olhos devagar. Eram grandes e escuros, quase pretos, ainda assim a luz entrava nos olhos como se estivesse viva e querendo invadir minha cabeça. Ficar a vida inteira num buraco escuro tendo apenas cogumelos e fungos luminiscentes, deixa os olhos especialmente sensíveis. Não era a minha primeira vez aqui fora, a última vez foi quando o gelo estava alto e até a mãe veio junto, mas era de noite como sempre. Viver no buraco sempre escuro faz da luz uma inimiga. Um pouco só naquele calor e já estava sentindo a roupa ficar molhada de suor. O pai pegou a corda ainda amarrada na minha cintura e levou um tempo para puxar o saco lá de baixo. Meio cantando, tirou o saco do buraco, abriu e espalhou as coisas no chão, as armas e as garrafas de água, para amarrar o saco vazio na corda de novo, prender a ponta no começo da escada e jogar tudo para baixo. Então fechou o buraco e sentou ao meu lado.

Separou as armas e me deu uma faca, a espada afiada feita de aço de mola de caminhão com punho de borracha e o pé de cabra de um metro. O pai ficou quase com as mesmas coisas, menos o pé de cabra. Ele era o pai e por isso podia usar a espingarda comprida carregada de chumbo bem grosso.

Quando consegui cerrar os olhos na medida certa, mesmo por trás dos óculos pretos, olhei em volta. A entrada de nosso buraco ficava bem onde era a nossa casa. Ainda tinha alguns restos de parede e o piso estava inteiro, mas não tinha teto que o pai derrubou para não cair sobre a entrada de nosso buraco, nem portas ou janelas. Tudo estava rachado e quebrado. Em volta, onde antes havia muitas casas e até mesmo ruas ainda inteiras, agora só tinha restos. Só sabendo que ali era uma cidade para entender. Muita água e muita seca, muito frio e muito calor, deixa tudo em pedaços bem depressa.

O pai levantou e fomos andando pelo meio das pedras. O sol entrava pela roupa e o calor parecia a ponto de fazer tudo pegar fogo de surpresa. Andamos devagar até a entrada de outro buraco. Ficava no meio de uma pedras enormes. O pai bateu forte com o machado na porta de ferro e fomos sentar na sombra, sempre olhando para a porta. Não dava para saber se ia sair alguém daquele buraco. Uma vez, lembro que nunca mais saiu ninguém de um outro buraco mais adiante nas ruínas. Todo mundo ficou triste porque sabia que alguma coisa tinha acontecido com as pessoas que viviam nele e foi durante o gelo mais longo que tivemos. Muita coisa pode dar errado dentro de um buraco.

Só um pouco depois, o metal da porta deu um grito e abriu para dentro. Cinco pessoas saíram de pé, andando. Deviam ter uma boa escada lá para baixo. Estavam todos vestidos como nós e só dava para saber quem mandava mais pela forma como agia. Veio até o pai e se abraçaram bastante, depois me cercaram e falaram como eu ainda era pequeno e fraco para andar com uma espada, mas sempre rindo e brincando. Não dava mesmo para saber quem era quem, mas podia jurar que pelo menos um deles era uma mulher. Fomos todos para a sombra da pedra maior, olhando sempre para todos os lados como se fosse a primeira vez naquele lugar. Tudo muda depressa lá em cima.

Com as vozes abafadas, os mais velhos se reuniram e falaram enquanto o pai riscava um trajeto na terra seca. Concordaram, apontaram e começaram a andar na direção. O sol queimava através das camadas de roupa já ensopadas de suor. Caminhamos em fila, olhando apenas para o caminho adiante, até ficar plano, isto é, comparando como todo o resto. Ergui os olhos para as maiores ruínas das redondezas bem à nossa frente. Lembrei do lugar. Era um grande centro comercial faz apenas alguns anos, cheio de carros e pessoas. Agora é apenas um monte de pedras e metal retorcido. Atravessamos os montes de entulho e todos juntos começamos a afastar pedras de um espaço apontado pelo pai. O sol iria matar um de nós a qualquer momento. Ou todos. Quase sem pensar, fomos retirando coisas até que os degraus de uma escada apareceram. Dali em diante ficou mais fácil. Assim que o buraco ficou mais fundo e proporcionou sombra, paramos para beber muita água e continuamos. Sem avisar, o entulho que ainda bloqueava a escada desabou lá para baixo. Entramos de novo num buraco. Era o piso inferior do edifício e parecia ter resistido bem ao tempo lá em cima. A escuridão aumentou e pudemos tirar os óculos e as máscaras. Devagar, nossos olhos acostumados à vida inteira na pouca luz dos buracos foram se adaptando. Um deles era mesmo mulher, ou quase. Entre uma batida e outra de meu coração, senti que perdia o fôlego.

Ninguém esperava encontrar suprimentos ou roupas, foram saqueados há muito tempo por nós mesmos ou por qualquer outro. Essa expedição procurava principalmente grandes pedaços de madeira ou metal, ferramentas, vidro e recipientes, mas qualquer outro achado seria um tesouro. O Grande Projeto de Papai tem sido cavar um corredor entre nosso buraco e o desses vizinhos. Uma obra dessa demanda muito material e anos de trabalho. Além disso, é impossível fazer a maioria das coisas no pouco espaço e recursos de um buraco. Dividimos a turma em dois grupos e fomos procurar. Ela ficou com o outro pessoal.

Barras de ferro de construção ainda usáveis. Pedaços de alumínio. Vidros. Cada achado era apanhado e colocado em montes separados. Mesmo ali embaixo, o calor era enorme e paramos de novo para beber. Ninguém falava. Todos olhavam ao redor assustados. Depois de muito tempo, juntamos os achados no meio do andar, uma antiga praça cercada de esqueletos de lojas por todos os lados. O pai gritou que o dia já estava no meio e era bom se apressar. Reunidos em volta do monte, começamos a separar os achados por tipo e tamanho. As barras num lado, as peças de alumínio em outro, os vidros maiores num saco, algumas preciosas peças de plástico, rolos de fios de cobre e umas poucas peças de madeira maciça, cada dia mais raras.

O pai deles olhava para mim muitas vezes, depois para a menina, com um sorriso estranho. Nesse mundo desgraçado não tem mais nenhum menino ou menina e eu imaginava bem o que ele estava pensando. Foi quando já estava tudo separado e cada um se preparava para pegar um monte, que ouvimos o barulho. Primeiro um estalo seco e forte, depois um barulho gorgolejante de pedra rolando. O pai foi o primeiro a largar seu fardo de ferro e correr em direção à saída, depois os mais velhos e, finalmente, eu e ela, corremos atrás. Pela maior escuridão logo depois do barulho, todos já sabiam o que tinha acontecido mesmo antes de chegar à escada. O pai falou primeiro: o calor deve ter partido a escada. Nossa saída estava fechada por um monte de entulho. Eu e dois dos mais jovens corremos para começar a tirar os blocos de concreto e foi a vez do pai deles falar: não vai adiantar, o dia está terminando. Na hora, não entendi.

Voltamos para a praça de lojas e esperamos a decisão deles. Eu ainda não entendia e era o único, pois todos pareciam extremamente preocupados. Se a noite chegava, seria muito mais fácil levar os achados para nossos buracos. Imaginava todos caminhando pela noite fresca, sem o sol para queimar a pele ou torrar nosso cérebro. Mas, sem nenhuma esperança, nos sentamos em torno de uma fonte seca. Bebemos água e comemos pão de cogumelos, em silêncio.

Pelas poucas frestas dava para ver o sol se apagando aos poucos e o primeiro trovão fez tremer até meus dentes. Muitos depois dele e tão juntos que não era possível calcular o tempo entre a luz e o barulho e assim saber a distância, como o pai havia ensinado. Estavam em toda parte, ao longe e acima de nós. A areia caia do teto rachado e sacudido pela vibração dos trovões. A luz branca atravessava as frestas na perede. Foi ela quem acendeu uma tocha e fincou entre dois tijolos, voltava para seu lugar quando ouvi a primeira pancada sobre a laje acima de nós, logo seguida de outras e depois de tantas que era impossível ouvir a própria voz. Tentei falar com o pai, confesso, meio apavorado. No barulho impossível o pai me chamou e me levou até uma das frestas no alto da parede. Não acreditei quando vi pedras de gelo enormes, maiores do que a minha cabeça e algumas maiores do que eu, caindo do céu, esmigalhando-se no chão e arrancando lascas do concreto. Estilhaços penetravam a fresta e feriam meu rosto. Em pouco tempo o chão ficou cheio de pedras e continuavam caindo uma esmagando a outra com violência, até a própria fresta por onde eu olhava ficar tapada. O último burro a entender porque a noite era temida. Voltamos para junto dos outros, agora reunidos perto de uma grossa pilastra e olhando para o teto estalando e trovejando, com medo que o peso destruísse tudo. O barulho diminuiu um pouco, as camadas de gelo abafando o choque das pedras ainda caindo. Os pais conversavam, mais para acalmar os filhos. O pai disse: Os mares estão quase secos, os rios e lagos já secaram faz muito tempo, mas a água ainda está toda por aí, lá no céu ou no fundo da terra. O outro pai disse: Não me lembro quando foi a última vez que apenas choveu, como antes. O barulho parou e ficamos esperando e aproveitando o silêncio. Recomeçou, agora como se estivesse longe, se aproximasse e passasse, como uma onda. Momentos de silêncio e em seguida vinha uma nova onda de pedras se derramando por muito tempo e passando. Foi assim por toda a noite até piorar quando amanheceu.

Dormimos um pouco, apesar do barulho durante toda a noite. Fomos acordados pelo silêncio abafado. Senti saudade de nosso buraco e dos meus três irmãos menores. Comemos e bebemos e o pai mandou juntar os fardos e sacos. Tinha pressa, agora e eu estava ansioso para voltar ao nosso buraco seguro. Foi então que muita água começou a entrar pelas frestas. O sol de sessenta graus estava rapidamente transformando o gelo em água. As paredes estalavam e lá em cima parecia estar passando um rio enorme. O chão tremia e as paredes balançavam com a força da água. Estalos ao longe pareciam explosões. O pai disse que era o gelo se quebrando e derretendo com o sol.

Aquilo durou muito tempo e entrou muita água, passando por nós e escorrendo pelas rachaduras no chão, indo para algum lugar nos andares obstruídos abaixo do nosso. A mesma água acabou ajudando e arrastando entulho que obstruía nossa saída, enquanto ficamos trepados na fonte de mentira. Apesar de tudo, foi divertido sentir a água gelada.

Lá pelo meio da manhã, tudo silenciou de repente. Acabaram os estalos e o barulho da água correndo. O pai deles era o mais cansado de todos nós e disse para ninguém e especial, que um dia não ia dar para sair dos buracos e o corredor era a coisa mais importante que havia para fazer. Encharcados e gelados, agarramos nossos fardos e saímos para fora. Grossas colunas de vapor subiam para o céu. O caminho estava todo mudado, com sucatas e pedras formando outro labirinto, diferente daquele do dia anterior. Mas todos seguimos o pai, ele sempre sabia as direções. O calor do sol devia secar nossas roupas pesadas, mas antes disso estava fervendo a água nelas e estava muito mais difícil andar, sentia a pele queimando, com se estivesse sendo cozido vivo. Não lembro de nada mais além da minha pele queimando, da sombra dura que eu seguia e das estocadas que sentia nas minhas costas, quando o pai deles cambaleava e me acertava com as pontas de ferro de seu fardo.

Chegamos ao buraco deles. Um dos outros garotos abandonou seu fardo de plásticos e não conseguiu trazer até o fim. Fomos cambaleando para o nosso, sem sequer olhar para trás. Ainda tivemos que amarrar na corda e descer cada pedaço de sucata que achamos. Quando finalmente desci, deitei no chão e esperei até o pai chegar. Dai em diante não vi mais nada. Minha mão está molhada de suor, só de lembrar do calor.

Chega de escrever, para ficar mais claro vou passando sal na velha garrafa para ficar sempre cheia de bioluzinhas. E o sal é difícil de arranjar. Então, hora de trabalhar, como diz a mãe.



Vida no Buraco



Um buraco tem muito de duas coisas: água e terra. A água vem da mina, escorre pelos túneis, alimenta os cogumelos, forma a piscina de tomar banho e lavar todas as coisas. A terra é o resto, parede, chão e teto. Pode ser preta, marrom e amarela. Pode ficar dura e lisa para fazer a parede e o chão, pode criar vermes e minhocas para comer ou pode cair sobre mim se eu não fizer direito o caminho através dela.


Depois conto o resto. Agora tenho que ajudar o pai lá no túnel – o pai diz caminho – que estamos fazendo para alcançar o buraco dos nossos vizinhos. O pai acha que já vai chegar o dia que ou nossa saída vai ficar bloqueada ou vai ficar impossível sair com o calor e as tempestades de gelo aumentando.

Três dormidas sem escrever nada, só cansado. Estou cheio de qualquer conversa sobre o buraco. Só dá trabalho. Fico olhando para minha última revista dos tempos antigos com artigos e gravuras. Um pedaço dela, pelo menos. Tem um sobre as grandes cidades cheias de carros e fala de congestionamentos, que é quando tem tanto carro que não podem mais andar. São uns veículos, outra palavra para carros, muito grandes e bonitos. Tem outro artigo sobre touradas e escreve muito mal delas e que deviam acabar. Pensando bem, os carros parecem touros ferozes parados aos montes nas ruas como uma manada de touros mansinhos. Poderosos mas estúpidos, andando devagar pelas ruas. A revista não está inteira e tem uma parte que não podia ter se perdido. Só tenho um pedaço da última folha, onde tem um homem ou uma mulher com asas.

Tinha um tempo, quando todos os homens tinham asas e moravam no céu? Quantas vezes eu fecho os olhos e fico imaginando.

Essa é outra linha, mas estou escrevendo depois de uma dormida inteira, muito tempo de trabalho e depois de comer cozido de centopéia de novo. Entre aquele ponto e este, caíram pedras do tamanho de carros e touros e o sol cozinhou tudo de novo lá em cima. Pois eu parei de escrever e fiquei parado, sonhando acordado que estava voando pelo céu, sobre florestas e praias sem fim e com a filha do vizinho ao meu lado. Ela apareceu pela primeira vez, sem ter pedido licença para fazer parte de meu sonho.