Divino Vinho
Vinho velho, old vine. Divino vinho. Aquela raiz de aparência frágil, fincada no meio do
jardim, podia ter mais de dois mil e quinhentos anos. Era a época
errada e ainda estava recém podada, seca como a terra, os tijolos
rodeando à sua volta e tudo o mais naquele jardim miserável.
Antigamente,
ou até uns anos atrás, todo aquele bairro era originalmente um grande
parreiral a espalhar-se por todo o vale, subindo as encostas ao sul,
oeste e leste, onde o sol iluminava por mais tempo. Com o tempo, a
cidade se expandiu, envolveu tudo e mudaram os costumes. Antes, o
primogênito herdava toda a propriedade e a mantinha inteira, então
passou a ser dividida igualmente entre os muitos filhos, fracionando a
terra em pedaços cada vez menores e na mesma proporção em que as
famílias ficavam maiores, cabendo muito pouco a cada um, quase um nada
onde erguer uma morada. Muitos venderam a estranhos esse muito pouco que
lhes coube e foram para longe, atrás das próprias oportunidades.
Erodido, sufocado, o parreiral encolheu até acabar ali, naquela raiz
mirrada e retorcida, a casca aberta expondo a carne e os veios, como
pele arreganhada e seca de uma velha de quase três mil anos.
Assim,
perdeu-se a memória dos dias de uvas colhidas por multidões de mulheres
e crianças, esmagadas pelos homens e meninos, recolhido o sumo e
acalentado para resultar no vinho mais precioso da antigüidade.
Até
mesmo Nero bebeu o vinho saído dali. Ele e outros abençoados com a
oportunidade de beber o melhor vinho que se tem notícia. Só seguir o
caminho inverso das rotas comerciais. Os carregamentos mais protegidos
dos ladrões e salteadores partiam de algum lugar ao pé daquela raiz.
Ordens antigas, registradas e arquivadas através dos tempos, comprovavam
que os imperadores romanos mandavam legiões até aqui, para escoltar as
encomendas. Napoleão destinava regimento inteiro para trazer tokai à sua
mesa. Perto dali, florescia criação de ovelhas abatidas apenas para
fornecer mantas de lã usadas para proteger os cântaros durante a longa
viagem. Envoltos em pele, seguiam em lombo de camelo até os barcos
fenícios, depois em carroças e nas costas de escravos até os palácios
dos senhores da antigüidade. Mesmo agitados por todo o percurso, diziam
que chegava ao destino tão bom que parecia retirado de uma adega quieta e
temperada, onde houvesse permanecido o tempo necessário para descansar.
Era
fácil acreditar na história. Entre os muros altos do quartel, onde os
mercenários aguardavam os carregamentos que deviam escoltar na longa
viagem até o mar, ainda existiam adegas enormes que mais pareciam cofres
, usadas para armazenar o vinho, acumulado até o limite da capacidade
da caravana. Outros indícios confirmavam a lenda. A riqueza dos homens
que a produziram ainda era visível por seus castelos e muitas lendas que
o desperdício e a soberba alimentou. Desde a produção até chegar à
degustação, todos os envolvidos fizeram fortunas com o produto daquele
vinhedo.
Tudo
bem construído e comprovado por evidências históricas, apontava para
aquele local. Para qualquer um, mas não para ele. Ali, ajoelhado sobre
sua descoberta, rindo de toda essa bobagem. Meio bêbado, é claro, mas
não mais do que bêbado, ainda segurando a garrafa onde restava uma boa
metade a ser bebida. Levantou a garrafa até os olhos, vendo o sol poente
do outro lado, rindo da fortuna despendida pelo seu conteúdo. Lembrando
que apenas dinheiro não fora suficiente para comprar, também muitas
relações certas, paciência, persuasão em diversos graus e algumas
iniciativas descaradamente criminosas. Olhou para a raiz e perguntou a
ela como poderia ter dado origem ao álcool que a embebedava, se não
produzia um cacho de uma sequer nos últimos trezentos anos. Só símbolo
de família decadente. Resto de glória. Tolice de velho.
Já
estava ali por algumas horas. Molhando a boca devagar, bochechando
suavemente para abrir bem as papilas; diretamente do gargalo, contra
todas as regras de decantação em círculos sofisticados; cuidando para
não desperdiçar gota alguma. Quando as papilas saturavam, esperava a
saliva limpar a boca, restaurando o sentido, recomeçando em pequenos
goles, atento a qualquer mínima alteração em sua cabeça. Tão
concentrado, parecia acompanhar o vinho impregnando seu sangue,
irrigando cada glândula e todas as partes de seu corpo, penetrando
docemente em seu cérebro para desabrochar sensações de leveza, certeza e
plenitude. Sua boca desejava cantar. Contaria em cantos a verdade que
reconhecia naquele momento, Tão desperto e pleno de compostos químicos
perfeitos e, ao mesmo tempo, absolutamente comuns ao mais vulgar e
descuidado vinho, semelhante ao bebido pelo humilde trabalhador, desses
adquiridos por dois dólar a garrafa em qualquer parte. Os mesmos
compostos químicos associados em proporções que separam o vulgar do
extraordinário.
Entorpecido
e quase fora de si, desejando desprender-se do corpo como de um
invólucro precário, sentia-se capaz de responder a qualquer pergunta,
sobre todas as coisas, pois sabia todas as respostas sobre si, as
coisas, qualquer um, o mundo e outros mundos. Estava guardando a garrafa
para aquele momento, carregado para cima e para baixo por toda a Ásia
durante os últimos cinco anos, até o dia em que encontrasse a sua fonte.
Agora,
sabia ter aberto na hora errada, muito longe de ter encontrado o
vinhedo que o gestou. Sabia ter perdido seu tempo e que fora conduzido
por sinais óbvios, mas despistadores. Como se ele próprio tivesse criado
um universo à sua volta para confundir seus próprios sentidos. Tudo
arrumado para seduzir por pistas que se interligavam e aparentemente
remetiam a outras por conseqüência lógica, todas evidentes demais para
conduzir a um segredo desse tamanho.
Bebia
mesmo assim, pois o perfume que evolou do gargalo lembrou de imediato o
cheiro quente e doce de uma vagina desejada, fértil e saudável, só
sentido uma vez dentre as coxas da mulher mais amada de sua vida,
penetrando em seu nariz com a emergência de algo que iria sumir para
sempre se não fosse imediatamente penetrada. Evocava a imagem forte do
supremo prazer oral que jamais sentira. Sua boca tremia de tão contida
em economizar cada gole, resistindo à tentação de beber tudo de uma vez
até mergulhar num turbilhão de onde não interessava fugir e tinha
certeza de não conseguir escapar. Esforço para resistir à tentação de se
embebedar completamente, procurando o efeito máximo que os setecentos e
cinqüenta mililitros pudessem proporcionar. Deter-se em deixar cada
pequeno gole encontrar seu caminho pelos cantos da boca, abaixo da
língua para encontrar as glândulas salivares, sobre a língua sempre
antes pressionada contra o palato para escancarar cada papila, sentindo
seus pobres sentidos humanos dependentes de um complemento além de suas
limitadas possibilidades.
Por isso estava sereno. Flutuando, bêbado, iluminado, absorto. Tudo nem tanto quanto desejariam, mas sereno.
Pois
todos os cinco anos perdidos junto com seu dinheiro e credibilidade,
tudo o que possuia de algum valor, para chegar àquela raiz patética,
remetia para outro caminho. Uma teoria louca, sem nenhum sentido e
absurda. Improvável e ao mesmo tempo correta, única explicação para
tantas pistas e evidências falsas plantadas para dar em nada.
Só,
isolado no jardim murado de uma casa vazia, a noite chegava como manto
perfeito para esconder descobridor e descoberta. Quantos saberiam? Uns
poucos. Ele apenas achava que sabia. Mais! Tinha certeza de sua
conclusão! Todas as histórias de uma cepa preciosa, origem de todas
grandes estirpes atualmente famosas na Europa, eram engodos. Apenas
plantas cuidadosamente selecionadas por gerações, para produzir o melhor
vinho possível ao engenho humano. As descrições de um vinho raro,
originário desse exato ponto na Ásia não eram exageradas, mas resultado
da propaganda possível naqueles tempos. Sua existência era real, seus
atributos é que eram inverossímeis.
Inundado
pela paz perfeita, todos os pensamentos pareciam direcionados,
desembaralhados, vendo o sentido oculto nos pequenos detalhes que
reunira por toda vida. Como uma alucinada tela abstrata que se
contorcesse, adotasse coerência de cores e formas até apresentar uma
paisagem realista, uma fotografia nítida do tema que sempre perseguiu. O
Graal do vinho!
Quando
o maior dos Médicis agonizava, pediu que lhe trouxessem uma ânfora com
um certo vinho, guardada entre as riquezas de seu enorme tesouro,
escondida onde a cobiça de seus secretários podia ser ludibriada. Ao
beber o último gole, os curandeiros e reis ao seu aldo apenas imaginavam
o que seus olhos viam para além da morte e o que sabiam dessa vida,
quando finalmente sorriu em beatitude, dizendo ser tudo o que queria
levar desse mundo e que ficassem os homens com seu ouro, domínios, poder
e todo o resto do mundo.
No templo de Delfos, as mulheres bebiam pequenas doses de uma poção mágica que lhes abria os sentidos para o amanhã.
Ricardo,
Coração de Leão; Felipe Augusto e Frederico Barbarruiva, beberam a
última garrafa então restante no Mundo Cristão. Era o ano de 1.188. O
Papa Inocêncio III ofereceu três taças de ouro aos reis cristão,
revelando que só haveria mais se fossem libertar o Terra Santa dominada
pelos muçulmanos. Eles partiram, mesmo Frederico, sabedor da eminência
de sua própria morte. Às portas de São João D’Acre, seu filho, também
Frederico, delirava por um gole de vinho, feito em algum lugar entre
Tiro e Jaffa, aprisionado nas garras do sultão Saladino.
Intrigada com as teorias de um navegador italiano, a rainha da Espanha brindou sua loucura,
testando as histórias que os velhos servos contavam sobre um vinho
muito antigo em sua adega. Inebriados, risos infantis eram ouvidos pelos
servos curiosos, confirmando que a empreitada nada tinha de insana,
levaria seu reino a uma riqueza jamais imaginada. Consumir aquele
líquido precioso foi um excelente investimento.
“Beba,
Michelangelo, para dar vida à sua criação.” E o artista tomou das mãos
do velho Papa uma taça de vinho. Então raspou as paredes sobre as quais
se aplicou durante anos, pois eram apenas pálidos rascunhos do que
podiam ser.
Quando
Merlin provou pela primeira vez o vinho da verdade, sequer convenceria o
mais tolo aldeão de suas habilidades, nem mesmo a si próprio. Depois,
todos os poderes lhe foram dados.
Até
hoje, os sacerdotes arremedam com um vinho qualquer para estabelecer
ligação com Deus, invocando o tempo em que os apóstolos beberam o vinho
verdadeiro, sangue do Cordeiro, fluído vital do Messias, veículo de
ligação entre suas pobres almas mortais e o Divino, levando às suas
bocas palavras de sabedoria em todas as línguas, aos olhos a certeza,
aos gestos o poder.
A verdade no vinho. A bebida dos deuses. In vino, veritas.
Metáforas do mesmo vinho perfeito capaz de levar um simples homem ao
saber pleno, despertando toda sua capacidade mental enquanto percorre
suas entranhas e desperta dons escondidos, cada um segundo sua
necessidade. Fazendo de alguns, visionários fadados ao sacrifício e de
outros, eleitos pela sorte, à riqueza absoluta. Dá a alguns poder e
glória, a outros dá a verdade como fardo esmagador. Para muitos, dádiva
apenas quando percorre suas veias, aciona glândulas, aguça sentidos e
amplia o cérebro, deixando a frustração do cego que pode enxergar apenas
por alguns momentos.
Tantas
pistas por todo lado, dando num dia dois mil anos atrás, quando um
pescador estranho resolveu abençoar os cântaros de água e torná-la
vinho. Daquele dia em diante, toda água guardada naqueles cântaros se
transformava em vinho, mas não um vinho qualquer. O mesmo vinho da ceia
entre os apóstolos, o mesmo vinho que invocou o pescador morto e fez
descer sobre eles a iluminação.
Guardadas
como relíquia, passaram a garantir aos devotos a sabedoria para
sobreviver num mundo hostil. Tão bem guardadas que nem mesmo rumores
eram conhecidos, apenas seus efeitos. Ocultadas dos muçulmanos,
escondidas de todos os homens, longe do alcance e do conhecimento de
todos, provado por pouquíssimos que se tornaram grandes e muitos que se
tornaram iluminados. Uma simples gota não tinha preço, uma garrafa
custava toda a fortuna de um homem, não importa quanto seja.
Sabia disso agora, como se tivesse vivido sempre num mundo escuro,
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