quinta-feira, 24 de novembro de 2011

The Son

The Son


My mother didn't bed a god

To call himself my dad

I would talk to him, if i could,

If i could go to heaven

But i don't know anyone there

I will go to hell for sure

Where i know everybody

where, i know, they don't play Beatles

And as i don't have a dad in heaven

And all that i had have, died

And maybe i don't need to have a dad anymore

Let it be my son

Because my mother fuck a men

A man like every other

And god don't have nothing to do with me

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Translate by Vitor Heofacker

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sensibilidade Bruta

O Pintado 

Primeiro, achei bonito aquele animal magnífico repousando sobre o gelo picado no balcão da peixaria. Escamas cor de chumbo com raias douradas, corpo de gigante com potentes nadadeiras, impossível de não imaginar nadando velozmente pelo fundo do mar onde é um dos seres mais graciosos. Depois, cenas de bravos pescadores fisgando magníficos espécies, com detalhe na fisgada do anzol, como rasga a boca e a linha puxa com técnica de cansar até ficar ao alcance do arpão que fura e recolhe o bicho estendido no fundo do barco, debatendo-se. Finalmente mordi um pedaço suculento de peixe e senti lá no fundo do palato, numa área da língua despertada por todas as reflexões anteriores, o gosto amargo do fel.

O gosto da dor desesperada que só um animal arrancado com violência de seu estado natural de liberdade é capaz de sofrer.

Fácil comoção desperta um animal magnífico das águas, jazendo morto à espera de ser retalhado para degustação dos consumidores. Mas os pequenos peixes todos iguais também foram livres um dia. Até os aparentemente estúpidos camarões que estão na parte de baixo da cadeia alimentar dos mares viveram alegremente suas breves existências, cumprindo seu papel. Em seu meio natural são devorados lutando, predando e sendo predados num ciclo eterno regido por leis universais, servindo-se de vida e sendo servidos diretamente a outro ser vivo.

Os animais que vivem sobre a terra e as aves nos ares, os quais podemos observar e admirar diretamente, já obtiveram um pouco dessa compreensão. Alguns seres dos mares que surgem na superfície e andam pelas praias, como golfinhos, baleias e tartarugas, encontram alguma proteção e são consumidos apenas por inescrupulosos ou por hábitos excêntricos, cujas convicções e culturas jamais permitirão que o paladar se desenvolva e identifique o gosto da crueldade.

Quanto aos seres vivos que são criados e consumidos por constituírem fonte de proteína essencial, foram selecionados para esse fim e acompanham os seres humanos desde sempre. Apesar disso, um certo gosto diferente, um travo de estúpida melancolia num bovino e uma textura de aflição numa galinha, ainda permanecem depois da refeição, dando o trabalho de abstrair os fatos para continuar se alimentando sem culpa.

Pois nenhuma ação de lavar, temperar, assar, cozer ou fritar consegue extirpar o gosto abjeto que persevera num pedaço de carne: o gosto da sua morte.



Portanto: Nunca coma um animal arrancado do estado natural de liberdade.

A Mesa de Centro


Um móvel imponente, num estilo moderno muito datado, com entalhes precisos e equilibrados sulcando a madeira escura e rija, mogno, imbuia ou uma dessas árvores exóticas extraídas das selvas de Goiás ou do Amazonas. Nobreza e requinte, como afirmam os catálogos e prescrevem os arquitetos, ficaria perfeita no meio da minha sala, guarnecida de objetos de fino gosto e expressando perfeitamente meu nível social. Rija, mas sedosa ao toque, com sua camada de verniz quase indelével vedando sua carne escura quase vinho. 


Contudo, antes da mão tocar sua tez finamente acabada, sente a emanação quente e pegajosa recendendo da madeira. A ponta dos dedos ficam dormentes sob o choque de uma energia desagradável, sem identificar qualquer agente que a emitiu. Está ali, em torno, quase fragrância, quase vapor, nunca dissipando. Lembra um outro mundo apenas concebido, um mundo de erros e perdas que está na periferia do mundo limpo e decente que conheço. Tresanda o som do tronco estalando enquanto cai, os galhos partidos pelo próprio peso, o gigante vencido e estendido sobre o que resta da selva. Homens miseráveis, ignorantes e famintos, caminham sobre ela com serras e machados, arrastam o corpo despido pelas trilhas, para os rios, por caminhões.

Retirada por escravos, transportadas em contrabando, permitidas pela inépcia e pela corrupção, produzidas por inescrupulosos e negociadas em espaços requintados freqüentados por classes abastadas.

Já testemunhou? um ato violento como de um sujeito levando um soco. Você ouve o som do golpe e sente como se fosse uma onda de choque emocional que faz arrepiar. É a mesma sensação cercando o móvel. Está impregnada desse outro tipo de dor, memória de crime e violência não disfarçada por desenhos sedutores nem por todas as técnicas de acabamento do marceneiro.

Pode não ser tão gritante. Pode ser uma história impregnada na madeira, como daquela vez… 



Uma Cadeira Impertinente


Havia então uma velha cadeira, bonita a despeito do estilo indefinido, todos os planos e ângulos bem torneados. Pertencia ao pai de minha sogra, com quem convivi durante seus últimos anos, tendo expirado justamente quando estávamos sós os dois. Guardei no atelier, planejando restaurar um dia e o tempo passou até anos depois sem que começasse o trabalho. Um dia, resolvi queimar enxofre pela casa. É impressionante como mesmo a luz parece entrar mais dentro da casa, o ar fica fino e limpo depois que a fumaça se dissipa e até o som fica mais aberto, parecendo propagar mais livremente pelos ambientes. Acabado, deixei o resto fumegante num canto, sem premeditar, justo sob a velha cadeira.

Dia seguinte, olhei a cadeira e, num impulso, trouxe para o meio do atelier e comecei a lixar, raspar, preencher e consertar. Enquanto operava, pensava sobre o homem que havia passado anos sentado naquela mesma cadeira, de como era um homem maduro e saudável que se tornou um velho frágil em pouco tempo, vítima de uma operação desastrosa no joelho da qual nunca se recuperou. Suas piadas de italiano, seu humor e amor, sua força e seus sonhos, tudo absorvido por mim de alguma forma durante o quase transe de restaurar cuidadosamente a velha cadeira. Eram impressões suaves de quem passa por uma paisagem e sensações de longe, como quem ouve falar por cima, sem sentir sua dor física e a sua revolta pela humilhação que na verdade sempre sentia. Olhei para o resto de enxofre e compreendi que a memória de alguma forma impregnada na madeira havia sido lavada, ou levada, ou desintegrada, permanecendo só um resquício perfeitamente suportável. Todos esses anos, a cadeira carregada de lembranças da longa enfermidade repelia minha aproximação.

Dali em diante, sempre que restaurava algum móvel, primeiro limpava suas lembranças com uma mistura forte de querosene e enxofre. Quando terminado o restauro, a peça parecia realmente nova, você sentia que era nova. 


O Louco


Dias de ira, armas prontas e todos os problemas em volta. Trabalho duro, mulher ruim, dinheiro curto, amor nenhum. Corro pela rua cumprindo um prazo e atrás do prejuízo. Cabeça feito uma algazarra, sem nenhuma esperança de poder terminar seja o que for, mas indo em frente de qualquer forma. A rua é uma parede pela frente, uma gosma sob os pés e arma uma tempestade no céu. Pura adrenalina estressada. Todos são formas indistintas à minha volta. Quando um doido verbaliza exatamente o meu pensamento.

Paro e vejo um ser angustiado adquirir substância e cores. É magro e desgrenhado mas decentemente vestido, carregando um saco cheio quase arrastado no chão enquanto a outra mão gesticula sem direção. Por sua vez, olha para mim, à minha volta e através de mim ao mesmo tempo, provavelmente assustado por ou sem entender a razão de ter formulado aquela frase. Vejo só um louco de rua, desses estatisticamente previsíveis em qualquer multidão. Ele não tem a menor chance de me responder de onde tirou o que disse. Já nem olha mais na minha direção, rompido o impossível liame, perdida a freqüência. Ele o louco e eu o enlouquecido já não estamos mais no mesmo meio. Estranhos novamente. Mas ele gritou bem alto e claro a frase que mais me transtornava. Tão exata que esqueci a pressa, esfriei por dentro e por fora e encarei meu estado ridículo.

Houve outros que também ouviram meus pensamentos ao penetrar na aura de desespero que formo à minha volta em alguns momentos. Como aquela mulher, certa vez. Sentada na beira de vitrine da loja, seus olhos me perseguiram pela rua. Piscou como se percebesse uma anomalia, reconheceu alguma coisa e gritou exatamente a coisa que me ia na cabeça naquele instante. Era uma coisa dessas de momento desesperado, daqueles que só um homem sem amor pode sentir e ela disse. De novo alguém se destacou dentre as formas difusas da rua, como se adquirisse relevo numa paisagem bidimensional. De novo me perguntei se meu desespero era assim tão evidente. 

A Espada de Tai Chi


Onde dá para classificar as lembranças que temos de outras vivências? Na sessão de alucinações ou no departamento da sensibilidade, depende da coerência que somos capazes de demonstrar ao relatar. Até hoje me questiono se eram lembranças de fatos reais ou apenas um amálgama bem temperado dos milhares de livros que li, com os milhares de filmes que vi, com milhões de notícias, com bilhões de sonhos e pensamentos que tive, com alguns desejos conscientes e inconscientes que alimento, tudo grudado com forte apelo emocional e um punhado de teorias espiritualistas sem qualquer fundamento, batido num liquidificador até que impossível distinguir cada uma de suas partes.

Tudo começou pela necessidade de fazer exercícios que compensassem minha vida sedentária de escritório, evitando as conseqüências de horas a fio num teclado de computador. Sempre reacionário, inventei minha própria atividade, procurando associar força e destreza, ocupar ao máximo as mãos e os braços, com efeitos satisfatórios para o resto da musculatura.
Primeiro fiz uma espada de madeira pesada com punho para as duas mãos e lâmina do comprimento do meu braço, mais ou menos na tradição das espadas de treinamento dos velhos mestres chineses. Segundo, fiz propósito de aprender através de um vago processo intuitivo, onde os movimentos seriam ditados pelo momento. Depois de aquecer como em qualquer academia, postava-me para o exercício voltado para o sul, pois do sul vem o passado, a tradição e o aprendizado. Os movimentos começaram a surgir. Com ataques seguidos de defesas, volteios, mudança de mão, passos e gestos precisos e repetidos como se fosse realmente uma técnica. Muito oriental, no geral, mas com movimentos que às vezes eram mais próprios de Conan, O Bárbaro do que de Bruce Lee. Por algum tempo foi apenas atividade física e surtia os efeitos que buscava. Até que ficou sério.

Suado e exausto após uma série de movimentos, comecei a ter imagens vívidas acompanhadas de emoções intensas. Apesar de imagens, difíceis de descrever. Apesar de intensas, distantes. Apenas violentamente emocionais. Uma das mais intensas era de uma mulher e duas crianças que davam adeus, acenando da porta de uma casa de pedras brutas e teto de palha. A tristeza de deixar aquelas pessoas para trás era insuportável. O amor por elas era um fato definitivo. A saudade e o remorso crescia até virar choro se eu deixava rolar. A agonia sem fim era não saber quem eram ou quais seus nomes apesar da enorme saudade. Ou melhor, saber de alguma forma, de ter seus nomes na ponta da língua, sem a menor esperança de um dia poder lembrar. Lembro a dor da partida e nenhuma outra partida jamais será tão dolorosa.
Ao final de cada exercício, tinha a visão emocional de uma batalha, de uma decepção. Até que meu cotidiano começou a ser invadido por esses fenômenos. Um dia, entrei numa loja para comprar sapato. Vi um tipo mocassim e experimentei, apesar de nunca ter usado um desses. Quando entendi que esse tipo de sapato fica mesmo meio solto no pé, olhei para baixo e vi meus pés descalços, sujos e ensagüentados. Uma constatação: minhas sandálias vão cair no meio da marcha e não vou poder acompanhar a tropa, vou ficar para trás e morrer. Senti um medo tão real que comprei sapatos de amarrar com segurança.
Como tempero para uma vida comum, essas experiências eram suportáveis. Outro dia, uma pessoa no ônibus me lembrou alguém que deixei e a mesma emoção mistura de tristeza e revolta e saudade e remorso e desespero se condensou como nuvens de tempestade. Mesmo assim prossegui, entre assustado e curioso, esperando surgir alguma visão feliz, algum momento de supremo prazer que mereceu ficar marcado, até que vivenciei minha própria morte de uma forma particularmente violenta. Foi o dia do ponto final. A natureza é sábia em nos fazer esquecidos. Seja do que for. Da lembrança de vidas passadas ou da memória genética, pois não sei de uma e desconfio da outra. Parece que só levamos da vida a dor de tê-la deixado.

Passei a fazer exercícios sem ritualizar, só com força e destreza, procurando focar apenas os gestos. As sensações não voltaram, mas a coisa ficou chata e fui parando aos poucos até aposentar a espada.

O tom deste texto é meio empolado, não mais do que uma forma de me distanciar um pouco, pois tudo o que está descrito aqui é verdade e aconteceu mesmo comigo.

Deixei até de contar outros pequenos acontecimentos. Um objeto em casa que me incomoda e nem sei a razão. Ficar sentado por horas no banco de passageiro de um carro, sem entender nada, onde a ex-mulher deu carona para sua amante. Outro objeto em casa, que me atrai sempre e que encontro mesmo escondido, pois está carregado de energias estranhas. Tomar um caminho diferente e muitas vezes errado, evitando um acidente lá na frente. Sentir-se estranhamente atraído por uma pessoa estranha. Saber com certeza absoluta o que está acontecendo neste momento com alguém distante.

Sempre acontece comigo. 

Não é bom ou ruim, apenas interessante. 

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Ficamos os Maus

UM SONHO.
Um menino escreve sobre ele para mim, diretamente de seu futuro impiedoso. Foi a forma que encontrei para descrever o mundo sonhado. O título... Os bons já se foram, pois só sendo mau para ficar para trás nesse inferno.
Dias de sol de 70 graus, noites de blocos de gelo caindo do céu e a vida de pessoas num mundo pós apocalipse climático.
Se quiser ouvir com o som de Dave Matthews Band - You & Me, aconselho.Sei que é de novela, mas o personagem gostaria. 

Ficamos os Maus


Escrevendo no Escuro

Estou começando bem na hora em que tudo parece ter terminado.


Não é fácil escrever, pois conheço poucas palavras que sei escrever bem. Muitas outras nem conheço e não vou tentar escrever para não ficar engraçado e bem no fim não ser levado a sério.

Falo sempre com o pai e pergunto as coisas. Um dia ele se encheu, eu acho, e me mandou aprender escrevendo. Disse: não tinha me ensinado à toa a ler direitinho e escrever bem certo. E não era só para ler as receitas de remédio e os manuais de fazer as coisas funcionarem de novo. Era para escrever também.

O pai sempre me olha quase chorando quando eu estou fazendo alguma coisa inteligente, tipo uma armadilha de rato ou vinho de cogumelo. Diz: ninguém deve ir atrás de coisas prontas e sempre devemos fazer as coisas das quais precisamos.

Então vou escrever para entender. E quem sabe alguém um dia não lê essas palavras e diz olha como esse menino escreve bem e nem nunca foi numa escola, o lugar aonde as crianças iam para aprender quando o mundo era mais calminho.

Pois vivo nesse mundo nervoso hoje. O pai disse: nem sempre foi assim. Antes chovia um pouquinho e raramente muito. O calor era motivo para tomar banho no rio e beber coisas geladas e não para se esconder no fundo da terra. Não sei como pode a chuva chegar e alagar tudo, arrastar e destruir. O pai diz: é porque é o mundo dos extremos, frio de 50 e calor de 50. Seca de pegar fogo na pedra e água de arrasar montanha.

Se o pai me ensinou a tirar o nariz para fora do buraco nos poucos dias entre o frio de matar e o calor de matar, para procurar metal e outras coisas, me ensinou a escolher o que posso comer e a fazer um monte de coisas para continuar vivo, a mãe me ensinou a ter muita raiva. Ela é bem dura. Diz: as pessoas são como uma doença que se espalhou por tudo como uma praga. Tinha cidade ligada com cidade por cicatrizes na cara do planeta. As pessoas eram loucas antigamente e arrebentaram com tudo. Como podiam ter acabado com um planeta desse tamanho? Só sendo uma praga para matar a Terra inteira! Ela grita. O pai nunca disse uma palavra e quando ela fica assim muito nervosa, eles vão lá num canto e acabam chorando baixinho depois de conversar bastante. O pai diz não ser nada, ela só tem muita saudade de antigamente.

Eu falo muito do pai é porque ele é o meio de tudo. O centro de tudo é melhor de dizer. Qualquer coisa ele sabe, qualquer coisa ele dá um jeito e faz. Quer ver ele feliz, é quando termina uma máquina ou tira do forno uma comida, inventando mais uma receita com cogumelos. Só fica mais feliz quando a gente faz alguma coisa nunca ensinada por ele e mesmo assim a gente fez. Não, espere, tem uma outra coisa que deixa ele brilhando no buraco escuro de tanta alegria. É quando conta as estórias lidas quando era mais novo e ainda tinha livro para ler que ainda não tinha ido para o forno fazer comida. Então vou falar do pai muitas vezes, da mãe e de meu irmão Vitor, os bravos sobreviventes do buraco mais organizado do planeta.

Mas foi a mãe quem me contou direito com viemos parar no buraco. O mundo já andava meio doente de tanta poluição do ar. Havia estações de frio, calor, chuva e seca e tudo tão gostoso e bom quando mudava um pouquinho só. Mas o mundo foi ficando cada vez mais sujo e com menos natureza, começou a chover demais, ter seca demais, mais quente a cada ano e mais frio também no inverno. Os extremos do pai. Até que dava para arrumar o mundo, mas houve alguma coisa como um desastre grande ou guerras com armas atômicas e acabaram com o mundo. O mundo podia aguentar se não estivesse meio doente, disse o pai.

O que aconteceu? O pai acha que foi um vulcão e escureceu o sol, a mãe acha que foi uma guerra atômica e mexeu com a temperatura já delicada. Isso porque o pai é do jeito mais sonhador e a mãe é do jeito dela mesmo.

Perguntei se tinha mais gente no mundo. Ela achava que sim. Dizia: tinha muita gente que havia construído máquinas de viajar para fora do mundo, as naves especiais, e que as pessoas que tinham muito poder e muito dinheiro tinham ido embora. Quando o pai disse que não tinha nenhum lugar para ir no espaço ela disse que achava que esses homens podiam ter construído lugares para viver no alto das montanhas mais altas. De todo jeito, só aqueles que tinham condições estavam vivendo bem. Esse assunto me deixa nervoso, aí escrevo que para cá, que para lá, um monte de que.

O pai disse que tudo isso é só uma pegadinha de Deus para se livrar dos políticos que podem mandar e dos milionários que podem pagar. Não sei o que é pegadinha e não sei quem é Deus, nem o que é milionário. Só sei que político não é coisa boa. Mas o pai se divertiu quando falou.

Aí foi quando a mãe disse que o pai gostava desse mundo como ele é. Viver de sobreviver cada dia, lutando contra tudo e fazendo tudo do jeito dele. Ele não servia mesmo para o mundo de antigamente. Muito antes do mundo virar uma porcaria, o pai sempre guardava ferramentas, comidas e outras coisas necessárias para sobreviver.Trabalhava sozinho, não sabia obedecer nem mandar, desprezava a autoridade e fazia ele mesmo com muito mais trabalho o que podia comprar barato num supermarcado. Nem tive tempo de perguntar o que é isso e o pai veio com seu poema.

O pai vive dizendo um poema que ele sabe de cabeça sem precisar olhar em um livro para dizer bem certinho. Serve para quase tudo, como se fosse um pé de cabra de um metro. Começa com ser ou não ser e ele fala até chegar na parte que ele acha que serve para aquela hora. Como sempre a mãe escuta meio sorrindo.

Amanhã será a minha primeira vez de ir com o pai lá para fora. Agora que meu braço já está do tamanho da lâmina da espada, posso acompanhar o pai e os outros homens. Vamos aproveitar que o tempo não está de matar e vamos procurar material que precisamos aqui em baixo. Vai ser a primeira vez do pai depois de muito tempo. O barulhinho da mina de água de nosso buraco está me dando vontade de dormir.



De volta



Não sei como, mas estou aqui de novo. Achei que nunca mais ia voltar a escrever bobagens aqui no meu cantinho no buraco.


Sair do buraco já não foi fácil. Primeiro, vestimos roupas grossas, com luvas, botas de borracha e uma máscara com apenas dois buracos para os olhos. O sol lá fora não é só quente, é mortal. Se pegar um pouco que seja na pele, vai deixar feridas. Nunca cicatrizam e se espalham por todo o corpo. Então é preciso cuidar. Depois de vestidos, abrimos a porta e pusemos a escada para subir até o teto do buraco e subir por uma outra escada comprida por um túnel umas cinco vezes a minha altura e tão estreito que quase não dava para dobrar a perna para subir o próximo degrau. O pai foi primeiro e eu fui logo atrás, levando a corda. Quando o pai chegou no final e abriu a porta redonda de ferro, senti a corrente de ar quente como um soco na cara e a luz entrou tão forte que fez meus olhos doerem antes de poder fechar com força. Mesmo fechados, via a luz atravessando a pele. O pai mandou ficar de olho fechado até sair.

Tateando como se ainda estivesse lá embaixo, senti o pai me puxando e saí para fora. O ar estava quente como fogo entrando pelo nariz e fiquei com medo de sufocar. O pai pôs os óculos sobre a máscara e me mandou abrir os olhos devagar. Eram grandes e escuros, quase pretos, ainda assim a luz entrava nos olhos como se estivesse viva e querendo invadir minha cabeça. Ficar a vida inteira num buraco escuro tendo apenas cogumelos e fungos luminiscentes, deixa os olhos especialmente sensíveis. Não era a minha primeira vez aqui fora, a última vez foi quando o gelo estava alto e até a mãe veio junto, mas era de noite como sempre. Viver no buraco sempre escuro faz da luz uma inimiga. Um pouco só naquele calor e já estava sentindo a roupa ficar molhada de suor. O pai pegou a corda ainda amarrada na minha cintura e levou um tempo para puxar o saco lá de baixo. Meio cantando, tirou o saco do buraco, abriu e espalhou as coisas no chão, as armas e as garrafas de água, para amarrar o saco vazio na corda de novo, prender a ponta no começo da escada e jogar tudo para baixo. Então fechou o buraco e sentou ao meu lado.

Separou as armas e me deu uma faca, a espada afiada feita de aço de mola de caminhão com punho de borracha e o pé de cabra de um metro. O pai ficou quase com as mesmas coisas, menos o pé de cabra. Ele era o pai e por isso podia usar a espingarda comprida carregada de chumbo bem grosso.

Quando consegui cerrar os olhos na medida certa, mesmo por trás dos óculos pretos, olhei em volta. A entrada de nosso buraco ficava bem onde era a nossa casa. Ainda tinha alguns restos de parede e o piso estava inteiro, mas não tinha teto que o pai derrubou para não cair sobre a entrada de nosso buraco, nem portas ou janelas. Tudo estava rachado e quebrado. Em volta, onde antes havia muitas casas e até mesmo ruas ainda inteiras, agora só tinha restos. Só sabendo que ali era uma cidade para entender. Muita água e muita seca, muito frio e muito calor, deixa tudo em pedaços bem depressa.

O pai levantou e fomos andando pelo meio das pedras. O sol entrava pela roupa e o calor parecia a ponto de fazer tudo pegar fogo de surpresa. Andamos devagar até a entrada de outro buraco. Ficava no meio de uma pedras enormes. O pai bateu forte com o machado na porta de ferro e fomos sentar na sombra, sempre olhando para a porta. Não dava para saber se ia sair alguém daquele buraco. Uma vez, lembro que nunca mais saiu ninguém de um outro buraco mais adiante nas ruínas. Todo mundo ficou triste porque sabia que alguma coisa tinha acontecido com as pessoas que viviam nele e foi durante o gelo mais longo que tivemos. Muita coisa pode dar errado dentro de um buraco.

Só um pouco depois, o metal da porta deu um grito e abriu para dentro. Cinco pessoas saíram de pé, andando. Deviam ter uma boa escada lá para baixo. Estavam todos vestidos como nós e só dava para saber quem mandava mais pela forma como agia. Veio até o pai e se abraçaram bastante, depois me cercaram e falaram como eu ainda era pequeno e fraco para andar com uma espada, mas sempre rindo e brincando. Não dava mesmo para saber quem era quem, mas podia jurar que pelo menos um deles era uma mulher. Fomos todos para a sombra da pedra maior, olhando sempre para todos os lados como se fosse a primeira vez naquele lugar. Tudo muda depressa lá em cima.

Com as vozes abafadas, os mais velhos se reuniram e falaram enquanto o pai riscava um trajeto na terra seca. Concordaram, apontaram e começaram a andar na direção. O sol queimava através das camadas de roupa já ensopadas de suor. Caminhamos em fila, olhando apenas para o caminho adiante, até ficar plano, isto é, comparando como todo o resto. Ergui os olhos para as maiores ruínas das redondezas bem à nossa frente. Lembrei do lugar. Era um grande centro comercial faz apenas alguns anos, cheio de carros e pessoas. Agora é apenas um monte de pedras e metal retorcido. Atravessamos os montes de entulho e todos juntos começamos a afastar pedras de um espaço apontado pelo pai. O sol iria matar um de nós a qualquer momento. Ou todos. Quase sem pensar, fomos retirando coisas até que os degraus de uma escada apareceram. Dali em diante ficou mais fácil. Assim que o buraco ficou mais fundo e proporcionou sombra, paramos para beber muita água e continuamos. Sem avisar, o entulho que ainda bloqueava a escada desabou lá para baixo. Entramos de novo num buraco. Era o piso inferior do edifício e parecia ter resistido bem ao tempo lá em cima. A escuridão aumentou e pudemos tirar os óculos e as máscaras. Devagar, nossos olhos acostumados à vida inteira na pouca luz dos buracos foram se adaptando. Um deles era mesmo mulher, ou quase. Entre uma batida e outra de meu coração, senti que perdia o fôlego.

Ninguém esperava encontrar suprimentos ou roupas, foram saqueados há muito tempo por nós mesmos ou por qualquer outro. Essa expedição procurava principalmente grandes pedaços de madeira ou metal, ferramentas, vidro e recipientes, mas qualquer outro achado seria um tesouro. O Grande Projeto de Papai tem sido cavar um corredor entre nosso buraco e o desses vizinhos. Uma obra dessa demanda muito material e anos de trabalho. Além disso, é impossível fazer a maioria das coisas no pouco espaço e recursos de um buraco. Dividimos a turma em dois grupos e fomos procurar. Ela ficou com o outro pessoal.

Barras de ferro de construção ainda usáveis. Pedaços de alumínio. Vidros. Cada achado era apanhado e colocado em montes separados. Mesmo ali embaixo, o calor era enorme e paramos de novo para beber. Ninguém falava. Todos olhavam ao redor assustados. Depois de muito tempo, juntamos os achados no meio do andar, uma antiga praça cercada de esqueletos de lojas por todos os lados. O pai gritou que o dia já estava no meio e era bom se apressar. Reunidos em volta do monte, começamos a separar os achados por tipo e tamanho. As barras num lado, as peças de alumínio em outro, os vidros maiores num saco, algumas preciosas peças de plástico, rolos de fios de cobre e umas poucas peças de madeira maciça, cada dia mais raras.

O pai deles olhava para mim muitas vezes, depois para a menina, com um sorriso estranho. Nesse mundo desgraçado não tem mais nenhum menino ou menina e eu imaginava bem o que ele estava pensando. Foi quando já estava tudo separado e cada um se preparava para pegar um monte, que ouvimos o barulho. Primeiro um estalo seco e forte, depois um barulho gorgolejante de pedra rolando. O pai foi o primeiro a largar seu fardo de ferro e correr em direção à saída, depois os mais velhos e, finalmente, eu e ela, corremos atrás. Pela maior escuridão logo depois do barulho, todos já sabiam o que tinha acontecido mesmo antes de chegar à escada. O pai falou primeiro: o calor deve ter partido a escada. Nossa saída estava fechada por um monte de entulho. Eu e dois dos mais jovens corremos para começar a tirar os blocos de concreto e foi a vez do pai deles falar: não vai adiantar, o dia está terminando. Na hora, não entendi.

Voltamos para a praça de lojas e esperamos a decisão deles. Eu ainda não entendia e era o único, pois todos pareciam extremamente preocupados. Se a noite chegava, seria muito mais fácil levar os achados para nossos buracos. Imaginava todos caminhando pela noite fresca, sem o sol para queimar a pele ou torrar nosso cérebro. Mas, sem nenhuma esperança, nos sentamos em torno de uma fonte seca. Bebemos água e comemos pão de cogumelos, em silêncio.

Pelas poucas frestas dava para ver o sol se apagando aos poucos e o primeiro trovão fez tremer até meus dentes. Muitos depois dele e tão juntos que não era possível calcular o tempo entre a luz e o barulho e assim saber a distância, como o pai havia ensinado. Estavam em toda parte, ao longe e acima de nós. A areia caia do teto rachado e sacudido pela vibração dos trovões. A luz branca atravessava as frestas na perede. Foi ela quem acendeu uma tocha e fincou entre dois tijolos, voltava para seu lugar quando ouvi a primeira pancada sobre a laje acima de nós, logo seguida de outras e depois de tantas que era impossível ouvir a própria voz. Tentei falar com o pai, confesso, meio apavorado. No barulho impossível o pai me chamou e me levou até uma das frestas no alto da parede. Não acreditei quando vi pedras de gelo enormes, maiores do que a minha cabeça e algumas maiores do que eu, caindo do céu, esmigalhando-se no chão e arrancando lascas do concreto. Estilhaços penetravam a fresta e feriam meu rosto. Em pouco tempo o chão ficou cheio de pedras e continuavam caindo uma esmagando a outra com violência, até a própria fresta por onde eu olhava ficar tapada. O último burro a entender porque a noite era temida. Voltamos para junto dos outros, agora reunidos perto de uma grossa pilastra e olhando para o teto estalando e trovejando, com medo que o peso destruísse tudo. O barulho diminuiu um pouco, as camadas de gelo abafando o choque das pedras ainda caindo. Os pais conversavam, mais para acalmar os filhos. O pai disse: Os mares estão quase secos, os rios e lagos já secaram faz muito tempo, mas a água ainda está toda por aí, lá no céu ou no fundo da terra. O outro pai disse: Não me lembro quando foi a última vez que apenas choveu, como antes. O barulho parou e ficamos esperando e aproveitando o silêncio. Recomeçou, agora como se estivesse longe, se aproximasse e passasse, como uma onda. Momentos de silêncio e em seguida vinha uma nova onda de pedras se derramando por muito tempo e passando. Foi assim por toda a noite até piorar quando amanheceu.

Dormimos um pouco, apesar do barulho durante toda a noite. Fomos acordados pelo silêncio abafado. Senti saudade de nosso buraco e dos meus três irmãos menores. Comemos e bebemos e o pai mandou juntar os fardos e sacos. Tinha pressa, agora e eu estava ansioso para voltar ao nosso buraco seguro. Foi então que muita água começou a entrar pelas frestas. O sol de sessenta graus estava rapidamente transformando o gelo em água. As paredes estalavam e lá em cima parecia estar passando um rio enorme. O chão tremia e as paredes balançavam com a força da água. Estalos ao longe pareciam explosões. O pai disse que era o gelo se quebrando e derretendo com o sol.

Aquilo durou muito tempo e entrou muita água, passando por nós e escorrendo pelas rachaduras no chão, indo para algum lugar nos andares obstruídos abaixo do nosso. A mesma água acabou ajudando e arrastando entulho que obstruía nossa saída, enquanto ficamos trepados na fonte de mentira. Apesar de tudo, foi divertido sentir a água gelada.

Lá pelo meio da manhã, tudo silenciou de repente. Acabaram os estalos e o barulho da água correndo. O pai deles era o mais cansado de todos nós e disse para ninguém e especial, que um dia não ia dar para sair dos buracos e o corredor era a coisa mais importante que havia para fazer. Encharcados e gelados, agarramos nossos fardos e saímos para fora. Grossas colunas de vapor subiam para o céu. O caminho estava todo mudado, com sucatas e pedras formando outro labirinto, diferente daquele do dia anterior. Mas todos seguimos o pai, ele sempre sabia as direções. O calor do sol devia secar nossas roupas pesadas, mas antes disso estava fervendo a água nelas e estava muito mais difícil andar, sentia a pele queimando, com se estivesse sendo cozido vivo. Não lembro de nada mais além da minha pele queimando, da sombra dura que eu seguia e das estocadas que sentia nas minhas costas, quando o pai deles cambaleava e me acertava com as pontas de ferro de seu fardo.

Chegamos ao buraco deles. Um dos outros garotos abandonou seu fardo de plásticos e não conseguiu trazer até o fim. Fomos cambaleando para o nosso, sem sequer olhar para trás. Ainda tivemos que amarrar na corda e descer cada pedaço de sucata que achamos. Quando finalmente desci, deitei no chão e esperei até o pai chegar. Dai em diante não vi mais nada. Minha mão está molhada de suor, só de lembrar do calor.

Chega de escrever, para ficar mais claro vou passando sal na velha garrafa para ficar sempre cheia de bioluzinhas. E o sal é difícil de arranjar. Então, hora de trabalhar, como diz a mãe.



Vida no Buraco



Um buraco tem muito de duas coisas: água e terra. A água vem da mina, escorre pelos túneis, alimenta os cogumelos, forma a piscina de tomar banho e lavar todas as coisas. A terra é o resto, parede, chão e teto. Pode ser preta, marrom e amarela. Pode ficar dura e lisa para fazer a parede e o chão, pode criar vermes e minhocas para comer ou pode cair sobre mim se eu não fizer direito o caminho através dela.


Depois conto o resto. Agora tenho que ajudar o pai lá no túnel – o pai diz caminho – que estamos fazendo para alcançar o buraco dos nossos vizinhos. O pai acha que já vai chegar o dia que ou nossa saída vai ficar bloqueada ou vai ficar impossível sair com o calor e as tempestades de gelo aumentando.

Três dormidas sem escrever nada, só cansado. Estou cheio de qualquer conversa sobre o buraco. Só dá trabalho. Fico olhando para minha última revista dos tempos antigos com artigos e gravuras. Um pedaço dela, pelo menos. Tem um sobre as grandes cidades cheias de carros e fala de congestionamentos, que é quando tem tanto carro que não podem mais andar. São uns veículos, outra palavra para carros, muito grandes e bonitos. Tem outro artigo sobre touradas e escreve muito mal delas e que deviam acabar. Pensando bem, os carros parecem touros ferozes parados aos montes nas ruas como uma manada de touros mansinhos. Poderosos mas estúpidos, andando devagar pelas ruas. A revista não está inteira e tem uma parte que não podia ter se perdido. Só tenho um pedaço da última folha, onde tem um homem ou uma mulher com asas.

Tinha um tempo, quando todos os homens tinham asas e moravam no céu? Quantas vezes eu fecho os olhos e fico imaginando.

Essa é outra linha, mas estou escrevendo depois de uma dormida inteira, muito tempo de trabalho e depois de comer cozido de centopéia de novo. Entre aquele ponto e este, caíram pedras do tamanho de carros e touros e o sol cozinhou tudo de novo lá em cima. Pois eu parei de escrever e fiquei parado, sonhando acordado que estava voando pelo céu, sobre florestas e praias sem fim e com a filha do vizinho ao meu lado. Ela apareceu pela primeira vez, sem ter pedido licença para fazer parte de meu sonho.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Foice

Leva para casa

Objetos e troços.

Pequenas coisas

Conquistadas no mundo.


Desce quando sobe

Uma ladeira maior.

Chegando em cima,

Prá descer é melhor.


Pedala pela noite,

A tarde foice

Cortando sua cabeça.


Meio equilibrado,

Apesar do cansaço,

Cachaça é combustível

E o caminho é de cór.


Comida, bebida,

Uma dúzia de pães.

Pensando bem,

Podia ser pior.


Comprando o que deu,

A grana foice,

Cortando sua cabeça.


Se sonha, não sabe,

Só que a noite é fria

E alguém em casa

Lhe merece o suór.


Pedala pela vida,

O tempo foi-se.

É branca sua cabeça.

Truque de Cabeça

Hoje eu tive um sonho,
Asas me nasceram.
Às estrelas vou só em sonhos.

.

Hoje sou mais um,
Entre tantos outros.
Noutra vida eu era importante.

.

Quando o amor acaba,
Fico louco a procurar
Mais um sonho intenso prá penar,

.

E se não tenho ninguém
A quem possa amar,
Então me amo prá poder levar.

.

Pão, circo, farsantes
Que você sustenta,
Mais um truque de cabeça prá sobreviver.

.

Deuses e heróis
Que você inventa,
Mais um truque de cabeça prá sobreviver.

Estrangeiro

Desde pequeno

Dragan Martinovic

Me ensinaram a rezar em inglês:

“Reza nessa língua, meu filho,

que Deus é estrangeiro”.

Por que fui nascer afegão,

africano, brasileiro?

Quem me dera ser alemão,

Inglês, americano.

Desde pequeno,

Me ensinaram a cantar em inglês:

“Canta nessa língua, meu filho,

prá ganhar dinheiro”.

Por que fui cantar polonês,

Lituano, português?

Se ganha mais espanhol,

Inglês, americano.

Desde pequeno,

Me ensinaram a matar em inglês:

“Mata nessa língua, meu filho,

pelo mundo inteiro”.

Por que fui morrer vietcong,

Iraquiano, guerrilheiro?

Se prefiro ser inglês,

um herói americano.

Desde pequeno,

Me quiseram igual a vocês:

“Seja um de nós, meu filho,

galinhas num terreiro”.

Por que fui nascer gavião,

Um lobo solitário?

quinta-feira, 31 de março de 2011

A Vida na Periferia - Revisitada

Relatório do Agente

Confirmações Antropológicas Urbanas

A Vida na Periferia

Envio as impressões superficiais sobre os hábitos da população residente nos limites de média aglomeração urbana padrão. Sinto o enfraquecimento das defesas contra a Retórica, causando perigosa aproximação pessoal com os objetos de estudo e distorção de minhas observações. Assim mesmo formulo o relatório, que pode ser futuramente utilizado para medir o grau e a intensidade dos danos resultantes do convívio prolongado com esta sociedade.

Objeto: População multiracial, economicamente homogênea, culturalmente indefinida.

Local: Habitações limítrofes de cidade média.

Impressão Inicial

As precárias condições urbanas são evidentes mesmo se observadas de grande altitude.

Não houve planejamento na ocupação, resultando em habitações construídas ao acaso. As margens dos rios foram ocupadas irregularmente por populações ainda mais carentes do que os moradores regulares, resultando que esses poucos milhares poluem a água necessária a milhões. Em outras regiões, a encosta das montanhas e elevações foram ocupadas sem controle. Em ambas as situações é evidente a precariedade das habitações. Não existe absolutamente nenhum sistema de captação e tratamento para os dejetos e rejeitos líquidos, os quais são despejados em cisternas ou escoam para os rios.

Os recursos alimentares ficam sujeitos à distribuição por estabelecimentos escuros, úmidos e dedicados à comercialização de produtos populares de procedência duvidosa, muitas vezes próximos ou além do prazo de validade, expostos sem refrigeração e em ambiente insalubre. Nas periferias, estabelecimentos comerciais fornecem à população carente produtos de baixa qualidade e alto custo, uma vez que o fazem para pagamento posterior a pessoas que normalmente não podem obter crédito formal. Nessa situação, a população pobre honra os compromissos sob pena de não poder continuar a se alimentar.

Serviços pessoais são prestados por pessoas sem formação específica, como cabeleireiros, dentistas e conserto de roupas, a baixo preço e em condições indigentes, com resultados insatisfatórios.

População

O perfil genético da população é resultante, em sua grande maioria, de relações inter-raciais envolvendo negros, índios e brancos. São indivíduos com tons de pele que variam de moreno claro a negro, com grande predominância de pardos.

Hábitos

Observar a população em seu cotidiano desperta pungentes sentimentos no observador. Por exemplo, as mulheres. A maioria não exerce qualquer função remunerada por tempo definido e remuneração perene. Quando ocorre trabalho, é ocasional e incerto, restrito a funções humildes nas residências da cidade ou em estabelecimentos formais. Assim, aquelas de mais idade permanecem em suas casas, cuidado de sua prole e das habitações. O cuidado com os filhos pequenos é esmerado ao extremo. Sua principal atividade durante o dia é permanecer em frente das casas, olhando os filhos e mantendo longas conversas entre elas. As mulheres jovens, igualmente desempregadas, costumam entregar os filhos às creches oferecidas pelo Estado, durante todo o dia.

Quanto aos homens, é grande o número de jovens e adultos sem trabalho definido e sem remuneração perene. A maioria deles exerce função onde não é exigida mão de obra especializada, como na construção, consertos, reparos e jardinagem, sempre por pouco tempo, com baixa remuneração e muitas vezes sem vínculo formal. Quando cessa a remuneração, voltam a depender exclusivamente da ajuda obtida dos governantes, que lhes garante o suficiente para a sobrevivência. Em seus muitos momentos de lazer, dedicam-se a organizar reuniões de amigos e parentes em frente às suas casas, para rituais específicos de consumo de bebidas alcoólicas alimentos de origem animal processados em fogueiras, confraternizações rudes e ruidosas e audição de músicas em elevado volume.

Muitos dos hábitos, como o de utilizar a rua para socialização e a audição e músicas com forte percussão, são originários de suas antigas tradições tribais, quando se reuniam no pátio das ocas para ouvir tambores. O hábito é o mesmo, independente da idade dos grupos reunidos, com mudança sutil apenas no gênero musical que mais agrada a cada idade. Os mais velhos ouvem músicas regionais corrompidas através das gerações, originárias de região no extremo sul desse continente, provavelmente lembrança de missões indígenas orientadas por religiosos. Em aglomerados urbanos do centro do continente, essa influência vem de culturas do extremo norte. Os sons dominantes são de musicalidade simples, com batidas fortes e repetidas, causando efeito hipnótico e eufórico.

Outros hábitos corroboram a teoria de suas origens, como a de proceder a queima de vegetação e detritos sólidos, atividade incompreensível quando dispõem de eficiente sistema de coleta de lixo.

Elemento curioso nesse ambiente: seus veículos motorizados.

Mesmo em habitações humildes e precárias, é onipresente o automóvel (veículo de transporte pessoal com quatro rodas, movido a combustão de material fóssil) e cada vez mais comum a motocicleta (veículo de duas rodas com o mesmo princípio e função).

São geralmente antigos e obsoletos, com muitos anos de uso e em condições precárias, rejeitados pelas classes dominantes das cidades e finalmente à disposição dos indivíduos da periferia graças ao baixo preço e condições de aquisição a longo prazo. Apresentam deterioração no aspecto, desgaste de motor e de outros componentes, sendo muito dispendiosa sua manutenção, motivo pelo qual circulam ruidosamente e com dificuldade. Esses veículos são utilizados para muitas outras finalidades, além do simples transporte pessoal ou como fonte de renda eventual.

São equipados com potentes reprodutores de música, utilizados em seus rituais de socialização e mesmo quando solitários, para atrair atenção quando se locomovem pelas ruas. São usados para uma espécie de esporte muito comum, que envolve expor o motor para os amigos e outros entendidos sem conhecimento formal, consistindo em trocar palpites sobre o estado mecânico, fazer ajustes e tentativas várias para resolver dificuldades crônicas irreversíveis. Tendo dispendido o total dos recursos econômicos para aquisição, não tem condições de arcar com a manutenção e substituição dos componentes mecânicos. Jovens que ainda gravitam em torno da habitação paterna, dispõem de recursos para adquirir esses equipamentos, resultando em mais de um desses veículos para cada célula familiar.

Uma das superstições comuns nessas comunidades é a noção que o equipamento mecânico deve ganhar pressão através da elevação da aceleração, quando permanece muitas horas em repouso, essa prática prejudica ainda mais o desgastado equipamento pelo acúmulo de fuligem nos pistões e promove ainda maior degradação do ambiente com suas emissões de gases nocivos e ondas sonoras.

É preciso observar que esse culto ao veículo de transporte pessoal é resíduo da grande importância econômica que teve nas últimas cinco décadas. Sua produção e comercialização era a principal atividade industrial do planeta, demandando vastos recursos naturais não renováveis, sendo a posse de veículo demonstração de status social em qualquer classe ou região. Atualmente, divide sua importância com a indústria de entretenimento, informática e alimentação, nessa ordem.

Estágio na evolução dinâmica

Aqueles habitantes mais antigos, que ocuparam estas vastas áreas quando seu valor era insignificante, encontram-se em conflito subliminar com novos habitantes, estes oriundos das regiões mais internas do aglomerado urbano. Excessivamente urbanizado e ocupado, com carência de moradia para as novas famílias, as regiões com infra-estrutura e saneamento tornaram-se inacessíveis para os habitantes da cidade, que procuram as regiões periféricas por sua disponibilidade e menor custo. Por possuírem maiores recursos econômicos e melhor nível educacional, ocupam casas recém construídas, de material durável e em pontos privilegiados, trazendo consigo os hábitos adquiridos quando moradores das regiões centrais. Por exemplo, dirigem-se com seus próprios veículos, em geral mais novos e atualizados, para adquirir alimentos em grandes estabelecimentos localizados nas regiões ditas "nobres" do aglomerado urbano, que dispõem de grandes áreas de estacionamento. Os antigos moradores adquirem seus alimentos caminhando até estabelecimentos próximos, que não possuem área de estacionamento, sendo o alimento levado posteriormente à sua habitação por veículo de carga desse estabelecimento. Enquanto os primeiros tem larga possibilidade de negociação e escolha, estes ficam sujeitos à baixa qualidade e elevado preço.

Além de trazer diferentes hábitos, os novos habitantes não costumam confraternizar com os antigos, a não ser para a contratação de mão de obra por serviços ocasionais. Essa atitude é estranha aos moradores antigos, que inicialmente eram simpáticos aos recém chegados, acolhendo-os com saudações e sendo tratados com estranheza e indiferença.

Consumo

Os habitantes das regiões periféricas têm acesso aos bens de consumo que são comuns aos habitantes de áreas mais valorizadas e próximas ao centro do aglomerado humano que gravita. Contudo, a qualidade desses produtos é muito inferior, muitas vezes adquirindo artefatos apenas depois de usados ou quando se tornam obsoletos. Utilizam simples aparelhos de comunicação pessoal, com limitada capacidade de interação por seu elevado custo. Não contam com praças e locais públicos para confraternização, apenas com locais controlados por facções de cunho religioso.

Conclusão

Abandonados por seus governantes nas questões de segurança e saúde pública, são sustentados pelos mesmos governantes em suas necessidades mais básicas e imediatas. Um cidadão comum pode passar toda a vida sustentado pelos diversos benefícios concedidos. Desde o nascer, nos hospitais públicos e na ajuda para seu aleitamento e recursos médicos. Nas escolas básicas, com acesso à educação e alimentação enquanto é criança. Nas diversas formas de assistência, até com ganho de valor mensal em moeda. Na velhice, com ajuda financeira até o fim de sua vida, sempre contando com dezenas de instituições e programas sociais que os mantém nessa vida sem perspectiva.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Quero Ser um Estereótipo!



A origem pode ser muito mais antiga, desde as festas de Baco na Roma antiga, ou muito antes, quem sabe. O fato é que a “Commedia dell’arte” soube consolidar com bom gosto e sucesso os mais célebres estereótipos de nossa sociedade.

Uma companhia era formada por até doze atores, cada um apresentando personagem tipificado no qual se especializava. As características físicas e psicológicas desse personagem eram exploradas até o limite em ilimitadas situações.

Cada personagem correspondia a um padrão e se vestia de acordo. Havia o Amoroso, o Velho, o Ingênuo, o Soldado, o Vigarista, o Fanfarrão, o Pedante, o Criado Astuto e assim por diante. Alguns personagens se imortalizaram, como o Arlequim e a Colombina, Polichinelo, Scaramouche, Capitão Matamoros e Pantaleone.

A razão para o sucesso desses espetáculos, desde os anos 1540 na Itália, é atribuída ao grande número de dialetos falados naquelas regiões, sendo os personagens logo reconhecidos por qualquer público no momento em que pisavam no palco, pois suas ações e reações eram antecipadas pela audiência, facilitando a comunicação.

Natural nas artes dramáticas, como respirar para os pulmões, o uso de personagens estereotipados está na maioria das situações dramáticas em todas as suas formas, seja cinema, teatro, televisão, música ou literatura. Como o seriado mexicano “Chaves”, o seriado Dallas, a atual e a anterior novela das oito, das seis e das sete, em Rambo, Batman, Terminator, Crepúsculo, Harry Potter, em toda parte os mesmos personagens estão lá, é só retirar a camada de verniz aplicada para contemporanizar o produto final.

Um exemplo de agora mesmo, percebido por Luiz Fernando Veríssimo, identifica: “Se entendi corretamente as apresentações, são 15 os “animais” do “zoológico”: o judeu tarado, o gay afeminado, a dentista gostosa, o negro com suingue, a nerd tímida, a gostosa com bundão, a “não sou piranha mas não sou santa”, o modelo Mr. Maringá, a lésbica convicta, a DJ intelectual, o carioca marrento, o maquiador drag-queen e a PM que gosta de apanhar...” numa crônica onde perdeu tempo falando do Big Brother Brasil.

Mas, afinal, cada um de nós também está em permanente processo para se tornar um estereótipo qualquer.

Quando você se forma numa boa universidade, depois se doutora, procura um emprego estável, busca se adaptar a um padrão exigido pelo mercado de trabalho, está em busca de seu próprio estereótipo. Em seguida procura os clubes, os bares, a parceira, a casa e o automóvel e tem os filhos que lhe correspondem e, por fim, acaba com uma família estereotipada que tem o fim esperado quando o divórcio dá o acabamento final ao seu tipo.

Nos detalhes particulares, cada um se molda a um estereótipo. Se é um militar, adota atitudes conservadoras e rígidas e se cerca de objetos e pessoas que combinam com seu estilo. Se é um professor, adota atitudes abertas e despojadas, assim como o vestuário e tudo em sua volta, cristalizando esses comportamentos com o avanço da idade. Se é seja lá o que for, procurará sempre consolidar seu personagem para ter um rótulo claro e assim ser facilmente aceito pela sua comunidade.

Principalmente no mundo em que hoje vivemos, tornar-se um estereótipo claro é essencial para a sobrevivência social, profissional ou sentimental.

Tendo cada um sua vida, composta de seu trabalho, família e relacionamentos, também se comunica com centenas de outras pessoas que pouco o conhecem, seja pelas redes sociais, seja pelas relações não propriamente pessoais no trabalho e em qualquer outra facilitada pela tecnologia. Assim, precisa ser imediatamente reconhecido como persona detentora de características específicas que interessem a outra persona e a mantenha próxima.
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Porisso nos enquadramos desde a infância, adotando vestuário e atitudes de uma tribo, depois quando jovens nos preparando para ser amáveis por alguém e quando adultos adotamos os padrões que facilitem nossa sobrevivência no meio social. Ou somos impelidos a nos enquadrar em uma dada faixa social, adquirindo por imposição suas características específicas.

De qualquer forma, por escolha ou por adaptação natural, procuramos nosso próprio estereótipo, semelhante e comum a milhões de outros seres humanos. 

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É fácil identificar em nós mesmos o estereótipo que nos caracteriza. A melhor técnica é a de comparação com o outro que nos cause estranheza. É preciso eliminar o preconceito e adotar alteridade como estado mental, procurando se colocar no lugar desse outro até que o compreenda como um estereótipo qualquer.
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Nesse momento, poderá, talvez, reconhecer os milhares de indivíduos iguais a ele que vagam pela face da Terra e os outros tantos que são tão semelhantes nós mesmos

quarta-feira, 2 de março de 2011

Vítima de Preconceito

A vida inteira fui vítima de preconceitos.


Desde quando me lembro, alguém ou um grupo sempre me discriminou por este ou aquele pretexto. Deixo de lado o período da infância, quando as crianças são cruéis por natureza, quando vivia mais com o nariz enfiado num livro do que brincando e passo logo aos muitos episódios de constrangimento.


É bom esclarecer que sou branco, de olhos azuis e cabelos castanhos, hétero, com 1,78 m de altura e 62 quilos, com biotipo caucasiano padrão e leves traços eslavos, como o queixo largo e o nariz ligeiramente maior do que a média. Só ligeiramente. Aos 53 anos, ainda com muito cabelo e uma incipiente tonsura no alto da cabeça. Assim, nem gordo, nem baixo, nem negro, nem careca e, pensando bem, nem mulher, todas essas vítimas estereotipadas de todo tipo de preconceito.


Chegando em curitiba, quando adolescente, um imigrante caipira.


Respeitei demais uma namoradinha, ela me chamou de viado.


Louro e com esse sobrenome, polaco é um negro virado do avesso.


Dono de escritório contábil aos vinte anos, um piá de bosta.


Magro, um pau de virar tripas, dois palitos enfiados num sabugo.


Motociclista, um elemento suspeito, violento, irresponsável e avesso à autoridade, Resumindo, um maconheiro vagabundo.


Estudante de faculdade paga, incapaz de passar na Federal.


Psicólogo, um ouvido de penico, um médico frustrado fazendo curso mais fácil e barato.


Contador, um sujeito aborrecido, burocrático, procurado sem cerimônia para fraudar imposto, arrumar um tempo de serviço fajuto para aposentadoria ou sacanear um empregado.


Agente da SBAT, direitos autorais no teatro, um corrupto ou corruptível a quem se oferecia propina a troco de vantagens.


Agora curitibano, quando viajava as pessoas estranhavam ao descobrir que eu não era nem antipático e nem frio.


Com esse sobrenome, sempre esclarecendo que não era judeu.


Passei em primeiro lugar em concurso da Fundação Cultural e fui trabalhar em museu, era chamado de bailarino pelos outros funcionários municipais e de contador metido a artista pelos colegas de Fundação.


Andava com pessoal de teatro e de novo me chamavam de viado.


Amigo do Jean, que seguia o Inri Cristo, me chamavam de maluco.


Restaurador e encadernador, um artesão ignorante.


Morando em Colombo, um vileiro de periferia.


Carro com placa de Colombo, qualquer bobeira na rua e me xingam geograficamente.


Será que o discriminado às vezes sente vontade de ser outra pessoa? Sendo outro, enfrentaria outros preconceitos. Se fosse garoto rico seria chamado de filhinho-de-papai, se tivesse porte atlético seria apontado como pitbul descerebrado.


Não tem saída prá ninguém.


Só tenho que dar graças por ter tido amigos e às vezes ter sido amado, a despeito de tanta discriminação e preconceito.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Porco-espinho


FaceBook, Twiter, Orkut, Redes sociais.

Era uma vez uma comunidade de porco-espinho que dormia cada um no seu canto durante o verão. Quando chegava o inverno - e costumava ser rigoroso naquele lugar – aproximavam-se uns dos outros para permanecerem aquecidos e os espinhos machucavam. Voltavam para seus cantos, mas o frio obrigava a procurarem o calor uns dos outros. Aos poucos, aprendiam que havia uma distância mínima entre eles que não era tão perto a ponto de machucar, nem tão longe a ponto de perder o calor.

Nessa posição, não era possível se mover muito ou bruscamente, pois os espinhos ficavam quase tocando a pele uns dos outros. Mas era agradável ficar ali quietos, no calor da toca apertada.

A metáfora de Schopenhauer ilustra o comportamento social.

O vazio e a monotonia, a necessidade de afeto e aprovação, as catástrofes naturais ou provocadas, as comoções sociais em geral fazem as pessoas se aproximarem.

Mas o caráter narcisístico, cada vez mais comum aos comuns, única forma de afirmação da própria individualidade, última defesa num mundo onde até mesmo o pensamento mais recôndito, estúpido ou genial, é comum em outros incontáveis cérebros humanos, mantém os indivíduos separados.

As redes sociais são uma forma de manter essa distância segura dos outros, enquanto mantemos proximidade apenas com os membros da própria família e relações com meios corporativos, pois ambos são obrigatórios, seja por imposição legal ou por necessidade de sobrevivência.

Além dessa característica, permitem exercer seu narcisismo livremente e com mínima censura, através de amostras de suas qualidades artísticas ou científicas, para obter aprovação de uma comunidade. Assim, compensam sua fragilidade e irrelevância diante do Universo.

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Vida Real I
Os Espinhos são Bons
 
Cada espinho é um aspecto de nossa sigularidade.Cada um de nós é um indivíduo único, do qual não existe cópia fiel nem replicante. Para o bem ou para o mal, cada ser humano é um universo em si mesmo, repleto de dons e defeitos, falhas e grandezas.


Vida Real II
Os Espinhos são Maus

Viver uma época caracterizada pela repressão do mercado onde cada um é apenas um objeto administrado,faz dos espinhos atributos indesejados.

Assim, o Estado arranca cada um deles a cada vez que:

a) instala uma câmera de vigilância, a pretexto de segurança pública;
b) obriga a uma declaração de imposto de renda, a pretexto de custear o bem comum;
c) impõe regras cada vez mais severas para dirigir um veículo, a pretexto da segurança no trânsito;
d) obriga a identificação digital para votar, a pretexto do aperfeiçoamento da democracia;
e) reprime a livre manifestação do pensamento, a pretexto de combater o preconceito;


Para viver em paz e harmonia, cada vez mais próximos uns dos outros, seja virtualmente ou fisicamente, os espinhos deve ser extraídos.


quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Zen Nagô - A Vida é Mais


Viver pode ser não fazer, mas deixar que venha feito e acabado.
Viver é mais dar à inspiração chance de se aproximar, pois está à nossa volta.
Viver não pode ser apenas essa euforia e essa maluquice do dia a dia.
Que viver não seja o trânsito, o supermercado e a fábrica.
Muito menos a gravata ou a ferramenta.
Viver deveria apenas sentir a vida e as coisas vivas.
Viver deveria ser deixar viver.
*
Viver é deixar fluir a vida atentamente, malemolentemente.
Como um truque básico Zen.
Como estar lado a lado com a naturalidade, naturalmente.
Como um truque básico Nagô.
*
Pois o Zen Nagô é minha religião
E Dorival Caymmi o seu Profeta.
*
Meu Sol nem se põe nem alvorece,
Está sempre perto da linha do horizonte,
Que se contrai, inverte-se.
Como uma rede onde me deito.
*

Pois o Zen Nagô é minha religião
E Dorival Caymmi o seu Profeta.
Belo, pleno e doce ócio,