quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O Mapa Sentimental

Dona Arlinda, benzedeira santa, me disse uma vez que
Guarujá, São Paulo, 29 de dezembro de 2013
quem vai para a praia nesta época não descansa. Ao invés de descarregar suas energias negativas, acaba absorvendo a energia negativa do mar sobrecarregado.

Daí escrever esse post: 


Para traçar um mapa orgânico sensorial confiável do Planeta Terra, os técnicos costumam utilizar Fantasmas. Assim denominamos nossos aliados de Betelgueuse, pela transparência de seus corpos. São constituídos de matéria orgânica quase translúcida, composta exclusivamente de elementos nutritivos e cartilagens proto-ósseas, que lhes dá semelhança de gelatina. Recebem o apelido pejorativo de amebas humanóides, mas essa atitude só é comum àqueles que temem os seres muito diferentes. São especialmente valiosos por sua capacidade visual incomum, pois vêem as emanações mentais-emocionais de outros seres vivos e mesmo o resíduo desta tênue forma de energia que impregna ambientes e objetos que cercam esses seres vivos.

O Planeta Terra é habitado por seres que produzem emanações curiosamente intensas e os Fantasmas precisam utilizar lentes protetoras. Essa capacidade de emanar é sempre diretamente proporcional ao equilíbrio e autocontrole dos indivíduos de uma espécie: quanto mais passional e primitiva a fonte, maior a intensidade e dispersão de energias.

Nossos técnicos locais especulam que os Fantasmas também são capazes de sentir as emanações, além de enxergar. Talvez seja essa a explicação para que permaneçam sempre por curtos períodos de observação, logo retornando a seu próprio tempo/espaço. É difícil afirmar qualquer coisa quando nos referimos a Fantasmas, seus rostos são absolutamente vazios de qualquer expressão.

Resumindo os relatórios finais, realizamos alguns testes no nível micro-cósmico para calibrar nossa equipamento e estabelecer um espectro de cores para ilustrar a natureza das emanações. Escolhemos uma família padrão de cinco pessoas observadas discretamente e adaptamos os gráficos para demonstrar sentimentos através de cores. Desta forma, o estado de relaxamento e paz interior razoável é da cor verde. Os estados de alerta e de atenção normais são representados pela cor azul, enquanto os estados de desequilíbrio vão do amarelo ao vermelho, sendo essa a cor do máximo estresse a ponto de ruptura da sanidade do indivíduo.

Os resultados foram óbvios, comprovando obviamente a tese da razão direta entre as situações de conflito interno e interpessoal com as cores emanadas. Calibrado o equipamento e aprovado pelos Fantasmas, passamos à tarefa propriamente dita, usando nossos instrumentos de observação em órbita para análise do microcosmo particular: estabelecer o mapa emocional do planeta.

Todas as regiões do planeta são povoadas quase uniformemente, com maior concentração nos continentes três e quatro. Em todos os aglomerados urbanos os tons vermelhos são dominantes, demonstrando extrema tensão individual e social disseminada universalmente.

Apenas em duas pequenas cidades, a cor verde foi onipresente durante todo o período de um ano terrestre estabelecido pelos protocolos de pesquisa. Locais isolados, em continentes distintos e aparentemente comuns, fogem de forma tão completa ao padrão dominante que serão motivo de pesquisas específicas no futuro.

Eventos sazonais causam curiosas movimentações de massa humana e alterações nos padrões emocionais representados por cores.

Evento: Movimento em massa para as praias.

Hemisfério Sul do continente um, no início do verão.
As médias cidades distantes da costa marítima apresentam coloração geral no mais intenso vermelho demonstrativo da tensão de seus indivíduos. Quase ao mesmo tempo, esta população se desloca em massa para as cidades costeiras onde permanecem por alguns dias.


Ocorre um fenômeno estranho no oceano, que normalmente é indiferente à observação dos Fantasmas, pois permanece constantemente em verde e azul e não é objeto dessa pesquisa. Suas águas lentamente apresentam coloração mais tensa, iniciando perto da costa e se espalhando lentamente, até todo o oceano próximo se tornar intensamente vermelho. Enquanto isso, a massa de indivíduos apresenta cor azulada e, em alguns pontos isolados, atinge o equilíbrio verde. O fenômeno de transferência de energia para as águas do oceano é visível.

Contudo, há um momento de saturação do oceano, que parece ter capacidade limitada de absorção. Então, as tensões armazenadas são devolvidas aos indivíduos próximos das margens, não sendo possível determinar um padrão para esse fenômeno.

Indivíduos onde o alívio de tensões foi mais duradouro, voltam aos aglomerados urbanos onde perdem lentamente o equilíbrio conquistado junto ao oceano, configurando efêmeras ilhas de cor azulada em meio ao vermelho permanente.

As águas do oceano voltam lentamente à coloração verde-azulada, somente recuperadas completamente por força das correntes frias da estação seguinte, meses depois.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Fixação de Sinapses Permanentes e Controle Social


O mecanismo de aprendizado é determinado pela formação de encadeamentos mentais. Aprendemos a língua materna de forma natural, aprendemos uma segunda língua com relativo esforço e uma terceira e quarta com facilidade cada vez maior, pois o encadeamento se fortalece pela repetição. É a mais evidente constatação do mecanismo de consolidação de sinapses nervosas, fenômeno fisiológico que ocorre quando nossos neurônios transmitem informações entre si.
Em todos os níveis mentais, assim estabelecemos tendências, preferências e comportamentos sensoriais. Marshall McLuhan, em seu livro “A Galáxia de Gutemberg”, refere-se ao ato de ler como comportamento apreendido, pois a facilidade com que lemos as letras da esquerda para a direita e uma linha após a outra determina a qualidade desse nosso hábito. Além desse, outros sentidos podem ser orientados e educados, como a audição. Ouvindo sonoridade cada vez mais elaboradas, podemos educar nossa audição e apreciar estilos cada vez mais eruditos, até a mais complexa e elaborada ópera.
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Padrões indesejáveis também podem ficar sedimentados. Por exemplo, uma criança habituada a horas diárias em jogos eletrônicos, geralmente musicados com ritmos primários e repetitivos, de baixa qualidade melódica e pior qualidade sonora, vai desenvolver uma irresistível preferência por esses mesmos padrões durante sua juventude e vida adulta, passado a preferir músicas tecno-eletrônicas geradas por equipamentos digitais e não por instrumentos naturais. Até mesmo a preferência pelo som despido dos graves e agudos extremos, eliminados quando um arquivo sonoro é diminuído para ser facilmente baixado, já foi detectada em pesquisas recentes. Um padrão foi consolidado, não admitindo outro para o sentido audição, seja no exemplo da exigência de um erudito ou do padrão popular mínimo.
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A especialização de neurônios e os encadeamentos mentais não é tese a ser provada aqui, pois é matéria de psicologia comportamental e educacional básica, exaustivamente difundida para além dos círculos acadêmicos. Mas sua aplicação é mais ampla do que podemos imaginar, estando impregnada em todas as nossas atividades diárias, naturais e onipresentes como o ar que respiramos e sequer notamos. Descrever cada ação do ato de dirigir é quase impossível, por exemplo. Pode ser identificada com um mínimo de acuidade. É só parar e observar, questionando preferências e identificando tendências que introjetamos em alguma fase de nossas vidas. Ou que nos foram impostas.
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Essa é a questão: As sinapses nervosas podem ser consolidadas para atender a interesses?
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Não necessariamente malignos, dignos de uma delirante teoria de conspiração, mas bem prosaicos, como a associação de cores e sons a um produto comercial, desenvolvido pela publicidade. Ou nossa preferência por filmes americanos, uma língua que mal entendemos, mas selecionamos ouvir por ser tão familiar enquanto lemos a legenda. Por falar nisso, estamos tão massificados pelo hábito, que esse é o mal do cinema nacional: não tem legenda para ler.
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Há uma ciência em desenvolvimento, chamada Neuro-Reprogramação, ainda meio na metafísica e tão respeitada quanto remédios florais, que procura resposta para essas questões, ambicionando estimular bons hábitos e novos comportamentos, desativando hábitos indesejáveis ou limitadores, mas permanece na questão pavloviana, sem encarar o funcionamento desse mecanismo no âmbito social.
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Por décadas, neurocientistas acreditaram que os neurônios eram os responsáveis por toda a comunicação no cérebro e sistema nervoso e que as células gliais, embora nove vezes mais numerosas que os neurônios, apenas os alimentavam.
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Novas técnicas de imagem e instrumentos de “escuta” mostram que as células gliais se comunicam com os neurônios e umas com as outras sobre as mensagens trocadas pelas células nervosas. As células gliais são capazes de modificar esses sinais nas fendas sinápticas entre os neurônios e podem até mesmo influenciar o local da formação das sinapses.
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Devido a essa proeza, as células gliais podem ser essenciais para o aprendizado e para a construção de lembranças, além de importantes na recuperação de lesões neurológicas. Experiências para provar isso estão em andamento.
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Perceber a influência da comunicação de massa, seu enorme poder de persuasão através de diversos mecanismos de convencimento, intimidação e ilusionismo, tão potentes que afetam nosso princípio de realidade. Dar-se conta de que diversos extratos da sociedade têm visões do mundo tão diferentes entre si que a própria realidade é relativa. Por falar nisso, “real” é tudo o que emana do “rei”, da autoridade máxima, conduzindo nosso comportamento e préconceituando o universo ao nosso redor.
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O que move você?

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Atualizo o post:

Neuromarketing é uma piração do mercado, travestida de ciência que estuda a essência do comportamento do consumidor, ou seja os analistas de marketing esperam usar o neuromarketing para melhorar as métricas de preferência do consumidor.

sábado, 28 de novembro de 2009

O Homem Perfeito

Como é o Homem Ideal?
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Karl Marx codificou uma obra que assustou tanto o mundo capitalista do século 19 que surgiram as leis trabalhistas e todos os critérios que salvaram crianças da exploração e deram aos adultos direitos básicos, como jornada de trabalho limitada e descanso semanal. Ele imagina o homem ideal como indivíduo livre, produtivo e criativo,ou seja, senhor do próprio processo de produção.
Sob uma perspectiva completamente diferente, Adam Smith e seus seguidores do Capitalismo compartilham dessa opinião.
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Sigmund Freud fez descobertas que esclareceram o comportamento humano, enfrentando poderosos tabus universais como infância, sexo, ditadura do meio sócio-cultural e pressão do subconsciente. Para ele, o homem ideal é aquele que conquistou a auto-consciência e a consciência do seu meio, trafegando sem atritos por seus mundos interiores e em harmonia com o mundo externo. Complementado por Young, sua dimensão é total, incluindo auto-consciência espiritual.
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Marshal Mcluhan foi o primeiro ou mais importante primeiro pensador e crítico dos meios de comunicação de massa, sonhou uma "aldeia global" e militou por reformas no sistema educacional que, se efetivadas, conduziriam as pessoas ao conhecimento pleno. Mas, foi vencido, pois pregava que a educação é processo de formação de caráter e não de treinamento de mão de obra. Crítico feroz da escola tradicional, o autor canadense aponta os defeitos do sistema atual, que, segundo ele, prefere criticar a mídia, em vez de utilizá-la como aliada na educação. "Poucos estudantes conseguem adquirir proficiência na análise de um jornal. Ainda menos têm capacidade para discutir com inteligência um filme." Irônico, afirma que "a educação escolar tradicional dispõe de um impressionante acervo de meios próprios para suscitar em nós o desgosto por qualquer atividade humana, por mais atraente que seja na partida". Para Mcluhan, o homem ideal é aquele que se tornou impermeável à influência das mensagens pela solidez e abrangência de sua educação.
Outros pensadores compartilham desta visão, como Bertrand Russel, Fritjof Capra e Rousseau.
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Adolf Hitler não descreveu o “homem ideal”, mas o “indivíduo ideal¨. Para ele, seria o produto perfeito de um processo de eugenia, representando os ideais de inteligência e perfeição física da raça ariana, sob a qual todas as outras raças estariam subjugadas. É o indivíduo fim em si mesmo.
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Jesus Cristo, Maomé e Buda, homens ideais, buscavam o “ser humano ideal” entre nós animais. O homem perfeito é o animal humano que deveria humanizar-se para depois tornar-se Jesus Cristo, Maomé ou Buda. Esse é o ideal de todos os messiânicos, de todos os alquimistas que já existiram e de todo Mago de verdade. Transformar o chumbo da carne em ouro do espírito, morrer e renascer para a vida eterna, sair da diversidade para a unidade. À sua maneira, Jean Paul Sartre vai pelo mesmo caminho quando afirma que ser homem é tender a ser Deus.
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Sócrates idealiza o ser humano ideal como alguém que não se expõe desnecessariamente ao perigo, uma vez que são poucas as coisas com que se preocupa o suficiente; mas está disposto, nas grande crises, a dar até a vida sabendo que em certas condições não vale a pena viver. Está disposto a servir aos homens, embora se envergonhe quando o servem. Ele não toma parte em manifestações publicas. É franco quando a suas antipatias e preferências, fala e age com franqueza, devido a seu desapego pela desejos dos homens e coisas. Nunca tem maldade e sempre esquece e passa por cima das injustiças. Não gosta de falar. Não lhe preocupa o fato de que deve ser elogiado ou que outros devam ser censurados. Não fala mal dos outros, mesmo de seus inimigos, a menos que seja com eles mesmos. Seus modos são serenos, sua voz é grave, sua fala e comedida; não costuma ser apressado, pois não acha nada muito importante. Uma voz estridente e passos apressados são adquiridos pelo homem através das preocupações.Ele suporta os acidentes da vida com dignidade e graça, tirando o máximo proveito de suas circunstâncias, como um habilidoso general conduz suas limitadas forças com toda a estratégia da guerra. Ele é o melhor amigo de si mesmo e se delicia com a privacidade, ao passo que o homem sem virtude ou capacidade alguma é o pior inimigo de si mesmo e tem medo da solidão.
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Emmanuel Kant propõe a formação de um ser humano ideal, estabelecendo a disciplina e a coação como pressupostos fundamentais no processo de educação. Mediante o rigor, a coação e a obediência levará a formação do caráter dos indivíduos. Segundo Kant, a disciplina e coação são apresentadas como fundamento necessário para a liberdade e a moral. A autonomia, princípio básico do bom uso da razão, depende da saída da menoridade, quando o ser humano não se encontra esclarecido.
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Stephenie Meyer não aceita a idéia de que seus vampiros sejam projeções de um ser humano ideal que deveria ser admirado, mesmo vivendo eternamente, pois deixam de ser humanos quando se transformam. Para ela, o ser humano ideal é aquele que está comprando um livro dela e milhares de escritores comerciais também pensam assim.

Pior do que criticar os livros de Stephnie, é gostar de ler os livros dela. 
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Leonardo da Vinci partilhava do ideal de universalidade renascentista, de que o ser humano ideal era o homem que conhecia todas as ciências e todas as artes.
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Confúcio idealizava aquele que conseguia a virtude perfeita, que chamava de "homem perfeito" ou "cavalheiro". Essa qualidade humana superior consistia na sinceridade, na moderação, na justiça, na fidelidade à natureza, na lealdade. Era, em suma, o zen, que, ao contrário do que pretendia a aristocracia feudal, não vinha do berço, mas se conquistava mediante permanente autocontrole e disciplina.
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Max Scheler , filósofo que já nasceu dispondo da língua perfeita para filosofar por suas infinitas possibilidades semânticas, a alemã, sonha que o herói é o ideal humano (como o santo e o sábio) que possui, em ordem decrescente, cinco valores fundamentais: santidade, brilho intelectual, nobreza, utilidade e capacidade de ser agradável. Segundo ele, o “herói é um tipo de pessoa ideal, com o centro de seu ser fixado na nobreza do corpo e da alma". Suas análises abrangem os mitos de super-homem, cartoons e HQ's com uma sagacidade exemplar.
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Arnaldo Jabor confunde o "macho perfeito" com o homem perfeito, numa crônica de sucesso. Reduz uma boa discussão filosófica ao estreito perfil do metrosexual cordial e domesticado. O estranho é que as mulheres adoram o tipo canalhão, quantas já não trocaram uma vida estável pelo primeiro bombado num conversível vermelho...
Pior do que não gostar do Jabor é ter que concordar com o que ele diz.

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To be continued...

sábado, 7 de novembro de 2009

Vivi no Melhor Mundo

Quando vejo como vivem meus filhos, me dá uma tristeza enorme.
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Era descomplicado, entendem? Sem televisão, sem jogos eletrônicos, sem telefone, sem nenhum perigo de encontrar violência. Nenhum complicador além de jogar bola, explorar os arredores, andar de carrinho de rolemã, brincar de coubói, ver matar e destrinchar um porco, aproveitando cada pedacinho. Nenhum perigo além de ser pego comendo uvas e morangos ainda verdes, meter fogo numa cerca (dois dias e uma noite escondido no galinheiro depois dessa - e todos sabiam que eu estava lá e deixaram!) ou rasgar a perna num espinho.
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Anos depois, conheci Curitiba como jamais. Cidade ainda mensurável, com começo e fim. Hoje, não termina, começa de novo em outra. Hoje, curitibanos não moram nela.  Andava por ela de moto, dando para contar quantas haviam na cidade, hoje é um caos e ser motoqueiro é sinônimo de crime ou baixaria de motobói. O romantismo e o espírito easy rider (aqueles dois traficantes) morreu.
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Ninguém falava em "efeito pantufa", a Amazônia era um imenso território a ser conquistado e as estações sucediam-se exatamente como dispostas no calendário. Nas enciclopédias, descreviam as baleias como fontes de alimento e gordura, mostrando-as heróicamente caçadas e retalhadas para nossa fruição. Os jacarés eram descritos como fonte para bolsas, sapatos e cintos. O verbete para "elefante" mostrava um caçador prestes a ser atropelado, com uma enorme carabina apontada para o ponto entre os olhos do animal. Mais abaixo,  ilustrações com delicadas obras de arte feitas com o marfim.
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O mundo ainda era grande. Um grande campo de caça com enormes florestas a serem epicamente conquistadas e dobradas à nossa vontade , pois eram lugares sombrios e perigosos, onde morava a bruxa malvada, onde o lobo comia menininhas e onde você podia se perder para sempre. Assim aprendi, através de fábulas infantis.
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O mundo era grande demais, perene demais. Só sabia das notíciais relevantes, que realmente importavam. Lembro de minha mãe gritando da janela "o Kennedy morreu" e eu, brincando debaixo das pereiras, olhei em volta e vi o vento cessar de todo e uma estranha imobilidade, uma expectativa sobrenatural, paralisar as árvores por um longo momento. Era 22 de novembro de 1963 e eu tinha seis anos e meio. Pois as pequenas notícias não circulavam, nem eram superdimensionadas por milhões de mídias, muito menos causavam a histeria das pessoas por pouca coisa. Hoje, um joguinho qualquer sem importância é tão minuciosamente explorado pelo jornalismo esportivo que gera guerra entre torcidas, causa tumulto e danos ao patrimônio público, pois o menor estímulo faz explodir a vida insossa da rapaziada e todos os impulsos de aventura, prazer e experimentação que a vida na cidade sufoca.
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Estou ficando velho! Fico dizendo que época boa era a minha. Mas posso comparar os momentos que vivi com aqueles que estou vivendo e não vejo como poderia fazer agora as mesmas coisas que fazia quando menino. Muito menos proporcionar a meus filhos vivências semelhantes.
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As grande propriedades de meus avós foram expoliadas pelos seus filhos, divididas e subdivididas até virar um monte de casinhas insípidas. A cidade fagocitou os campinhos e as plantações. Ninguém mais faz fumo de corda no galpão da casa, nem mutirão para debulhar o milho para as galinhas, nem é possível cruzar a cidade a pé para visitar a namorada.
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Tudo sem culpa e sem medo, naquele tempo. Nenhuma conseqüência em emitir gases nocivos ao gastar gasolina e  lixo era apenas lixo. Só comer codornas e perdizes, tucanos e tatus caçados por meu pai. Sem problemas com a Lei.
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Sem dúvida, vivi no melhor mundo possível.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

NEM PODEROSO NEM COITADINHO

  • Para você, não há uma vaga para estacionamento sempre vazia, esperando perto da porta do supermercado ou do shopping, muito menos nas ruas do centro da cidade. Precisa procurar mais longe e, na volta, passar por elas, que continuam vazias ou ocupadas por algum sujeito igual a você, mas que não se importa.
  • Para nós, não há um critério de quotas que reserve vagas para pessoas absolutamente capazes de concorrer em pé de igualdade, seja por deficiência física, seja pela cor da pele. Estou ao lado da maioria dos negros, índios e deficientes que sabem que eu não sou melhor que eles para precisarem de uma dianteira qualquer.
  • Para você, não há perdão nem procastinação da pena, se por acaso cometer algum ato ilícito, como desviar uma verba ou contratar um fantasma.
  • Você e Eu não somos nem poderosos nem coitadinhos.
  • Nós pagamos passagem de coletivo e entrada integral no cinema, enquanto outros que até podem andam de graça e alguns tem verba de locomoção .
  • Nós ficamos com as maiores filas.
  • Nós recebemos depois a restituição do imposto de renda.
  • Nós precisamos pagar com nosso trabalho pelas casas onde vivemos, enquanto outros invadem  e alguns moram em mansões funcionais.
  • Nós precisamos assegurar o alimento de todo dia com nosso suór diário, enquanto outros recebem bolsa família e alguns verba de representação.
  • Mas, quantos somos?
  • Somos a imensa maioria silenciosa.
  • Somos aqueles que aceitam a hipocrisia das leis, regulamentos e normas sociais.
  • Cada um de nós entende que, no futuro, os negros fomados por quotas e mesmo aqueles que abriram mão delas, orgulhosamente, só poderão atender outros negros em seus guetos. Afinal, já formam grupos separados dentro do ambiente acadêmico.
  • Todos nós intimamente compreendemos que os programas sociais de Estado interferem nas regras de seleção natural, promovendo proliferação desenfreada da pobreza e contribuindo para a manutenção do estado de miserabilidade. À nossa volta, famílias inteiras vivem de bolsa família e de pequenos trabalhos informais, satisfeitas em suas casas de invasão ou subsidiadas.
  • Todos sabemos e nos calamos, pois tememos as acusações de Racista! Preconceito! Intolerância! das quais teremos que nos defender por simplesmente expressar o óbvio! Dirão que estamos à extrema direita, posição que ninguém mais professa. Dirão que somos hitlers e que não temos coração.
  • Somos aqueles para os quais as Leis e Normas foram feitas, os poderosos e os coitadinhos estão acima e além delas.
  • Para nós, nada é dado ou de graça, nem fácil ou com desconto, tudo sem nenhum privilégio.
  • Se quiser se dar bem na vida, se enquadre num desses extremos e aproveite!
  • Pois, para os poderosos e os coitadinhos, tudo é relativo.
  •  
  • Para "Nem poderoso nem coitadinho 2'' 

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

SOCIALISMO VERSUS INDIVIDUALISMO

Um evento fortuito e absolutamente comum, me fez pensar no imenso valor das palavras, quando temos bem conhecido seu significado verdadeiro.
Por exemplo, desde o início do século passado, com a revolução russa, o mundo tem se debatido entre duas doutrinas: Socialismo e Capitalismo. São evidentemente opostas no âmbito econômico, pois tratam dos processos de produção realizados por métodos diferentes. A descrição de cada doutrina segue adiante, árida mas necessária para o entendimento de nosso assunto.
O fato é que a verdadeira batalha nunca foi travada entre estes dois inimigos. Quando percebemos outra doutrina arraigada na cultura ocidental, o oposto ao Socialismo é o Individualismo, sendo o Capitalismo apenas o sistema para execução de seus objetivos.
Daí nossa dificuldade em entender algumas culturas orientais que, por contingência de superpopulação ou mais insondáveis tradições gregárias, priorizam o social, o coletivo e o comum, conforme seus estágios próprios de evolução.
Para entender melhor como se entranham e se misturam essas três doutrinas distintas e assim avaliar o papel de cada uma, bem como lançar lucidez sobre sua importância, aqui seguem suas definições mais clássicas:

Capitalismo

Capitalismo é um sistema sócio-econômico seguido por vários países, onde a produção e a distribuição de riquezas são regidas pelo mercado, e os preços são determinados pela lei da oferta e da procura.
O capitalismo apresentou várias fases.
A primeira fase foi a do Capitalismo Comercial ou Pré-Capitalismo . Este momento estende-se do século XVI ao XVIII. Neste contexto, podemos identificar as características capitalistas como busca de lucros, uso de mão-de-obra assalariada, moeda substituindo o princípio de trocas, relações bancárias, fortalecimento do domínio da burguesia e desigualdades sociais.
A segunda fase foi caracterizada como Capitalismo Industrial. A Revolução Industrial modificou o sistema de produção, pois colocou a máquina para fazer o trabalho que antes era realizado pelos operários. A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, fortaleceu o sistema capitalista e concretizou sua procedência na Europa e em outras regiões do mundo. Com a Revolução Industrial se deu o processo continuado de fabricação em massa, geração de lucros e acumulo de capital.
Através da propagação das idéias mercantilistas, do crescimento do comércio e das condições para o surgimento do modo de produção capitalista, as riquezas acumuladas, assumiram a forma de capital industrial.
A terceira fase, o Capitalismo Monopolista-Financeiro , que teve início no século XX, tem no sistema bancário, nas corporações financeiras e no comércio globalizado os aparatos de desenvolvimento. A globalização permitiu às grandes corporações produzirem seus produtos em diferentes locais do mundo, procurando a diminuição de custos.
A partir da primeira guerra mundial, o Capitalismo passou por várias mudanças, passando de capitalismo competitivo a capitalismo monopolista.
A sociedade capitalista divide-se em duas classes sociais básicas: a dos capitalistas e a dos assalariados, onde os capitalistas são os donos dos meios de produção e os assalariados possuem a força de trabalho. O capitalismo gera uma sociedade de consumo. As sociedades dos países capitalistas são chamadas de sociedade de consumo, onde sob a pressão intensa da propaganda e da mídia , as pessoas são induzidas ao consumo exagerado.
A ansiedade social decorrente da industrialização, atraiu a atenção de vários estudiosos, que propuseram reformas com a intenção de acabar com as desigualdades econômicas e sociais. Apoiaram a tomada do poder pelos operários e a eliminação da propriedade privada para a formação de uma sociedade socialista. Essa violenta reação foi causada pela selvageria do Capitalismo, com a exploração indiscriminada e desumana da mão de obra.
Podemos caracterizar o socialismo como um sistema onde não existem propriedades privadas dos meios de produção, a economia é controlada pelo Estado com o objetivo de promover uma distribuição justa da riqueza entre todas as pessoas da sociedade, o trabalho é pago segundo a qualidade e a quantidade do mesmo.
Dessa forma, as decisões econômicas cabem ao Estado, por interferência dos especialistas que elaboram os planos econômicos. No entanto, a crise econômica mundial das duas últimas décadas do século XX, que teve papel principal no colapso da União Soviética, envolveu também os países europeus de governo socialista ou social-democrata. Na França, Suécia, Itália e Espanha os partidos socialistas e social-democratas foram responsabilizados pelo aumento do desemprego e do custo de vida.
Uma das características do capitalismo é modificar tudo em mercadoria, isto é inquestionável. Todo produto social passa a ter, além de seu valor de uso, um valor de troca, que se subordina às leis de mercado. Os dois modelos, à sua maneira concentram o capital e o poder. No capitalismo, em poder de poucos, e no socialismo em poder do Estado. O capitalismo prega uma eficiência tremenda para produzir. O socialismo é muito bem-intencionado e é muito pouco competente em distribuir. Até porque, não havendo produção, não há o que distribuir.

Individualismo

Como atitude geral, o individualismo valoriza a liberdade pessoal, a autoconfiança, a privacidade e o respeito pelos outros indivíduos e opõe-se à tradição, à autoridade e a todas as formas de controle sobre o indivíduo, especialmente quando exercidas pelo estado.
Teoria filosófica segundo a qual cada pessoa deve usufruir a máxima liberdade e responsabilidade para determinar seus objetivos, escolher os meios de alcançá-los e agir de acordo com tais pressupostos, o individualismo sustenta a autodeterminação, a auto-suficiência e a liberdade irrestrita do indivíduo.
Como filosofia, o individualismo compreende um sistema de valores, uma teoria sobre a natureza humana e a aceitação de certas configurações econômicas, políticas, sociais e religiosas. Seu sistema de valores pode ser sintetizado em três proposições:
l - todos os valores são antropocêntricos, isto é, experimentados -- embora não necessariamente criados -- por seres humanos;
2 - o indivíduo é um fim em si mesmo e tem valor supremo, sendo a sociedade apenas um meio para a realização dos fins individuais; e
3 - todos os indivíduos são, em certo sentido, moralmente iguais, expressando-se essa igualdade na assertiva de que nenhum indivíduo pode ser tratado apenas como meio para o bem-estar de outrem.
Desses princípios deriva a configuração institucional proposta pelo individualismo. A democracia liberal é a melhor forma de governo e o laissez faire (deixar fazer) a melhor política: o papel do Estado está em maximizar a liberdade e as oportunidades individuais. Somente os individualistas mais extremados acreditam no anarquismo, mas todos acham que o governo deve interferir minimamente sobre os indivíduos e limitar-se a manter a lei e a ordem, evitando que os indivíduos entrem em conflito e garantindo os acordos (contratos) voluntariamente ajustados. O estado tende a ser visto como um mal necessário e "o melhor governo é o que governa menos". Além disso, todos os indivíduos devem ter oportunidades iguais de, por meio do voto, determinar a forma e atividade do estado e, pela liberdade de expressão e associação, influenciar as crenças e o comportamento dos outros.
Em teoria política, o individualismo afirma a superioridade ontológica do indivíduo sobre a comunidade: o indivíduo não existe para engrandecer ou enriquecer o estado e a sociedade; mas o estado e a sociedade é que existem para promover a felicidade de cada um de seus integrantes. O individualismo opõe-se a todas as doutrinas políticas que dão prioridade às questões sociais: a sociedade não passa de um conjunto de indivíduos e cada um deles é uma entidade autônoma praticamente auto-suficiente.
O individualismo político é doutrina moderna, pois as democracias da antiguidade, na Grécia e em Roma, mantinham a prioridade respectivamente da polis e da res publica. No século XVII, filósofos como Spinoza e Locke lançaram os fundamentos de um individualismo que entrou, depois, no credo político de todas as espécies de liberalismo. As idéias liberais ganharam corpo na América do Norte britânica e na França do século XVIII. A revolução francesa, entretanto, caracterizou-se mais pelo sentimento nacional do que pelo individualismo.
No século XIX, o individualismo ganhou força no Reino Unido graças às idéias dos seguidores de Adam Smith e Jeremy Bentham, no campo econômico e político respectivamente. A doutrina smithiana do laissez faire, baseada numa profunda confiança -- herdada dos fisiocratas franceses -- na harmonia natural das vontades individuais, e o utilitarismo hedonista de Bentham, com sua regra básica ("cada um vale como um e ninguém vale mais que um"), prepararam terreno para essa evolução. Na área econômica, "o simples e óbvio sistema da liberdade natural" de Smith apresentava a troca de bens e serviços em mercados livres e competitivos como o sistema ideal de cooperação para benefício mútuo.
Uma forma moderna de individualismo é a doutrina do welfare state, que pretende adotar reformas de índole socialista para promover o bem-estar dos indivíduos. Trata-se de um conceito de governo no qual o estado desempenha um papel primordial na promoção e proteção do bem-estar econômico e social de seus cidadãos.

Capitalismo e Individualismo

Assim, já flagramos Adam Smith e Jeremy Bentham em conspirações, aproximados pela intercomplementação de idéias.
Vistos numa só perpectiva, o Capitalismo é o perfeito instrumento de realização e satisfação dos ideais do Individualismo. Assim, o acúmulo de Capital é prerrogativa dos Individualistas, todos aqueles que só observam a satisfação das próprias necessidades e o enriquecimento pessoal acumulam para si mesmos o maior volume possível de propriedades e valores.
Ambas as doutrinas dependem das mesmas garantias legais para sua sobrevivência: Propriedade Privada, Livre Empreendedorismo e Estado Liberal.

Socialismo

A doutrina socialista tem origem no século XVIII, logo que ficaram consolidaos os efeitos da revolução industrial sobre as sociedades modernas. É uma ideologia que critica o liberalismo econômico, e vai contra as noções de que o mercado é o princípio organizador da atividade econômica, devendo, portanto, ser preservado a todo custo. Surge principalmente como forma de protesto contra as desigualdades provocadas pelo intenso processo de industrialização, e contra as péssimas condições de vida dos trabalhadores.
Os socialistas observam, com justa razão, que são o mercado e a livre concorrência as principais fontes das desigualdades sociais. O socialismo propõe então limitar o alcance do mercado através de mecanismos reguladores, e defende o planejamento da produção como a forma mais eficaz de distribuir a riqueza produzida entre todos os membros da sociedade.
Esta é a principal preocupação da ideologia socialista: promover uma distribuição equilibrada de bens e de serviços, tornando-os acessíveis a toda a população. Equivale a idéia de socialização da produção. Havia ainda duas correntes de pensamento socialista. A primeira, da qual Marx faz parte, argumentava que o socialismo só seria possível se todas as nações praticassem-no de forma simultânea, caso contrário o fluxo financeiro e as trocas comerciais entre elas impediriam um planejamento equilibrado de suas provisões e necessidades. Justamente por tratar o socialismo como algo inalcançável sob as condições impostas, essa corrente foi chamada de utópica. Já a outra corrente acreditava na possibilidade de implementar o socialismo em poucos países, e então depois de estabilizado expandi-lo para outros. Para isso seria preciso a intervenção do Estado na economia, pois este seria a única força capaz de controlar a atividade dos empresários capitalistas em benefício de toda a população.
Alguns países tentaram efetivamente implantar o socialismo, todos eles influenciados pelo sucesso obtido pela U.R.S.S. após sua pioneira Revolução Bolchevique em 1917, entre eles a China. Com o término da 2.ª Guerra Mundial, e sob a influência da mesma União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (da qual participavam mais de uma dezena de nações, incluindo a Rússia) muitos países do leste da Europa aderiram ao socialismo e sua planificação econômica, entre eles a Polônia, a Romênia, a Tchecoslováquia e parte da Alemanha (Alemanha Oriental). Para conter os riscos de interferência externa apontados pelos socialistas utópicos, era evitado todo o tipo de contato com países não-socialistas, que caso fosse realmente essencial seria regulamentado pelo Estado.
A extrema interferência do Estado em todos os setores da economia levou alguns críticos a reduzir o socialismo, em suas manifestações reais, a uma espécie de "capitalismo de Estado". Outra questão importante sobre os países socialistas diz respeito a ampliação exagerada de suas burocracias , que com seus critérios extremamente técnicos e rígidos comprometiam a agilidade das decisões e por conseguinte de toda a economia. Os problemas burocráticos são apontados por muitos especialistas como uma das principais causas do fracasso dos regimes socialistas. Uma interpretação mais recente, realizada após a decomposição da União Soviética e a reunificação da Alemanha, apresenta o socialismo real como uma forma intensa de pré-capitalismo. Na argumentação de Kurz, o socialismo foi responsável pela transformação de sociedades predominantemente agrícolas (principalmente o caso da Rússia) em sociedades industriais. Ao longo de pouco mais de meio século ele promoveu nos países que o implementaram as mesmas modificações na estrutura econômica que demoraram mais de duzentos anos para se realizar no restante da Europa.
Definir claramente o sentido de Socialismo, hoje em dia, não constitui tarefa das mais simples. Essa dificuldade pode ser creditada à utilização ampla e diversificada deste termo, que acabou por gerar um terreno bastante propício a confusões. Constantemente encontramos afirmações de que os comunistas lutam pelo socialismo, assim como também o fazem os anarquistas, os anarco-sindicalistas, os sociais-democratas e até mesmo os próprios socialistas. A leitura de jornais vai nos informar que os governos Cubano, Chinês, Vietnamita, Alemão, Austríaco, Inglês, Francês, Sueco entre outros, proclamam-se socialistas.
Caberia então perguntar o que é que vem a ser este conceito tão vasto que consegue englobar coisas tão dispares.
A História das Idéias Socialistas possui alguns cortes de importância. O primeiro deles é entre os socialistas Utópicos e os socialistas Científicos, marcado pela introdução das idéias de Marx e Engels no universo das propostas de construção da nova sociedade. O avanço das idéias marxistas consegue dar maior homogeneidade ao movimento socialista internacional. Pela primeira vez, trabalhadores de países diferentes, quando pensavam em socialismo, estavam pensando numa mesma sociedade - aquela preconizada por Marx - e numa mesma maneira de chegar ao poder.
As teses apresentadas por Marx e Engels levaram a uma total modificação do caminho que vinha sendo percorrido pelas idéias socialistas e constituíram a base do socialismo moderno.
Apesar de obras anteriores, é o Manifesto do Partido Comunista que inova definitivamente o ideário socialista. A partir de sua publicação em 1848, tanto Marx quanto Engels aprofundaram e detalharam, em suas demais obras, suas concepções sobre a nova sociedade e sobre a História da humanidade. Antes de qualquer coisa, devemos fugir à idéia de que anteriormente a Marx existissem apenas trevas. O que há de genial no trabalho de Marx é sua aguçada visão da História e dos movimentos sociais e a utilização de instrumentos de análise que ele próprio criou. Marx se serve de três principais correntes do pensamento que se vinham desenvolvendo, na Europa, no século passado, coloca-as em relação umas com as outras e as completa em suas obras. Sem a inspiração nestas três correntes, admite o próprio Marx, a elaboração de suas idéias teria sido impossível. São elas: a dialética, a economia política inglesa e o socialismo. Para Marx o movimento dialético não possui por base algo espiritual mas sim algo material. O materialismo dialético é o conceito central da filosofia marxista, mas Marx não se contentou em introduzir esta importante modificação apenas no terreno da filosofia. Ele adentrou no terreno da História e ali desenvolveu uma teoria científica
A concepção materialista da história desenvolvida por Marx e Engels, é uma ruptura à História como vinha sendo estudada até então. A história aquela época chamava-se de História da Humanidade ou História da Civilização idealista que dominava até a algo que não passava de mera seqüência ordenada de fatos histórico relativos às religiões, impérios, reinados, imperadores, reis e etc. Para Marx as coisas não funcionavam desta maneira. Em primeiro lugar, como materialista, interessava-lhe descobrir a base material daquelas sociedades, religiões, impérios e etc. A ele importava saber qual era a base econômica que sustentava estas sociedades: quem produzia, como produzia, com que produzia, para quem produzia e assim por diante. Foi visando isto que ele se lançou ao estudo da Economia Política, tomando como ponto de partida a escola inglesa cujos expoentes máximos eram Adam Smith e David Ricardo. Em segundo lugar uma vez que a base filosófica de todo o pensamento marxista (e, portanto, também de sua visão de história) era o materialismo dialético, Marx queria mostrar o movimento da história das civilizações enquanto movimento dialético. A teoria da História de Marx e Engels foi elaborada a partir de uma questão bastante simples. Examinando o desenvolvimento histórico da Humanidade, pode-se facilmente notar que a filosofia, a religião, a moral, o direito, a indústria, o comércio etc., bem como as instituições onde estes valores são representados, não são sempre entendidos pelos homens da mesma maneira. Este fato é evidente: A religião na Grécia não é vista da mesma maneira que a religião em nossos dias, assim como a moral existente durante o Império Romano não é a mesma moral existente durante a idade média.

Conclusão (se possível e dentro das humildes capacidades desse autor)

Claro que qualquer conclusão dependeria de mais dados. Muitos dados. Ficamos como no trecho de Hamlet "da reflexão à luz mortiça, a viva cor da decisão desmaia". Mas não é desculpa para não tentar.
No mundo de Adam Smith, de Karl Marx e de todos esses codificadores de doutrinas, as preocupações eram infinitamente menores. Eles não conviviam com a superpopulação e hiper-urbanização do planeta. Sequer antecipavam, em 1917, o problema de escassez de recursos naturais e o aquecimento planetário. Pois ambas as doutrinas conduzem à nossa auto-destruição.
Uma, socializa tudo, dando a todos padrões de vida iguais. Outra, explora tudo, concentrando para si os benefícios e distribuido migalhas aos outros. Em ambas, o Mundo é pequeno demais, pobre demais e frágil demais.
Volto a emprestar das culturas orientais uma contribuição para chegar a uma conclusão.
Não com a associação dos aspectos positivos de cada doutrina. Pois o Socialismo pretende esticar sobre uma fatia cada vez maior de pão a mesma quantidade de manteiga, enquanto o Capitalismo reserva a manteiga para uns poucos e distribui o pão a todos.
Primeiramente, é preciso considerar o Capitalismo como mero instrumento do Individualismo, desiludindo os seres humanos quanto a sempre ser possível para uns poucos o acesso ao Paraíso do consumo sem limites.
Depois, conscientizar da impossibilidade de que todos terão sob o Céu o mesmo padrão de vida, pois todos os seres humanos são diferentes entre si e essas diferenças determinam suas prerrogativas e limitações.
Finalmente, fazer uma grande pergunta que nos salve de naufragar como civilização;
que traga a solução sem que seja necessário o trauma da guerra civil cotidiana nas grandes cidades;
sem que precise ocorrer o caos do aquecimento global;
sem a retórica insuportável dos Individualistas e dos Socialistas, interessados em manter o estado vigente abrangido por seus horizontes estreitos.

Como viver com dignidade nesse Mundo torturado, oprimido e inconsciente do século XXI?

Bibliografia

Recebi e.mail pedindo relação das obras utilizadas para o post. Muito do texto é espontâneo, baseado em antigas leituras, desde o "Compêndio de Filosofia" de Estevão Cruz, até “Meu Encontro com Marx e Freud” ( Beyond of Chains of Illusion) de Erich Fromm, Editora Zahar, 1967, livro dos mais queridos e esclarecedores que já li, reli e recomendo. O trecho sobre Capitalismo foi pesquisado na rede, coligindo textos diversos e complementando. Lancei mão de algumas obras básicas de filosofia e sociologia, entre outras:
O MANIFESTO COMUNISTA DE 1848 E CARTAS FILOSÓFICAS, K. Marx e F. Engels, Edit. Paz e Terra, 1996.
PRINCÍPIOS DA MORAL E DA LEGISLAÇÃO, Jeremy Bentham e J. Stuart Mill, Edit. Vitor Civita, 1974.
O PANÓPTICO DE JEREMY BENTHAM, Davidson Sepini Gonçalves, Edit Edgar Blucher, 2008.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

ENXUGANDO GELO

O press release é a única fonte da mídia brasileira. 

"No silêncio de minha solidão, subi até o alto da montanha, donde me pus a observar os Homens." 
Naveguei meu olhar ao acaso, passando enfastiado pelas folhas do Jornal de hoje. Ouvi distraído o murmúrio monocórdio do Rádio. Percebi pelo campo periférico de meus olhos e ouvidos o movimento hipnótico da Televisão. Esperançoso, cliquei em todos os links que remetem a arautos, críticos e cronistas da Wede Wundial de Womputadores.
É como observar uma árvore enorme, onde a terra é o Fato, as raízes são as poderosas Fontes oficiais, o tronco são as Redes de comunicação e os galhos suas diferentes Formas de difusão. As folhas são esses milhões de sites e bloqs que persistem na obra de comentar, criticar, esculhambar e eternamente repercutir.
Maravilhoso sistema funcionando como um todo dinâmico. Impressionante uso de tantas inteligências, inumeráveis aparelhos e mecanismos, exaurindo vastos recursos naturais, consumindo fabulosos megawats de energia elétrica e incalculáveis quantidades de calorias de energia vital.
Todos eles e tudo isso pautado quase que exclusivamente no cotidiano político.
Todos trazendo o fato sem explicação, com a promessa de um laudo qualquer daqui a sessenta dias.
Ocorre perguntar a uma testemunha ou obter qualquer dado que não seja o oficial?
Ah! esse Estado Total. 
Folheio o jornal e calculo mentalmente a quantidade de espaço ocupado por fatos e factóides políticos, tanto relevantes quando mesquinhos. No rádio ou na TV, todas as notícias falam das atividades dos três poderes - ah! tão poderosos! - cada um inventando justificativas para a própria existência, defendendo suas distorções e aberrações, esquivando-se de suas responsabilidades, sempre utilizando a mesma intragável retórica a serviço de ideologias insustentáveis.
Nos sites e blogs, ecoam os mesmos temas, abordados por jornalistas de notória competência e por uma legião de cidadãos amadores. Quase todos niveladamente geniais, contribuindo com análises precisas e acuradas, sempre originais, universalmente chistosas, para a inútil tarefa de pensar o mundo político que infesta igualmente todos os ambientes de informação.
Batalhões de caçadores de notícias, cuja formação jornalística nem sequer é reconhecida hoje em dia, aguardam ansiosos em todos os locais geradores de notícias políticas. Nos corredores do senado e da câmara federal estão postadas as maiores atenções. Em cada canto, em cada estado, nas assembléias de vereadores, esperam o press-release, a notícia ideologizada e pasteurizada que há de percorrer todas as mídias. Deles são esperados os grandes escândalos que desnudam suas vidas e expõem o preço que pagaram para obter e conservar poder, assim como todas as ilegalidades, artifícios e pura malandragem que sempre praticaram para fazer dinheiro e abrigar os seus. E se não produzem essas notícias, para eles são carreadas todas as questões como se fossem capazes de gerar solução.
É a mídia pobre e pequena do press release. Aqueles comunicados feitos para promover um evento, propagandear uma personalidade, vender um produto sob disfarce institucional, notas oficiais, discursos manjados. Preenchendo horas e horas de noticiário vazio, feito por gente mal paga e mal preparada que não noticia, só alardeia. Não informa, só difunde. Não pesquisa, só repete. 
Ah! esse Estado Divinizado!
Serão assim tão fascinantes, a ponto de merecer tanta atenção?
Não é estranho que os veículos de comunicação destinem tanto espaço para o noticiário político, pois vivem de vender notícia e nesse meio costuma acontecer coisas com as quais nem a mais delirante ficção pode competir. Afinal, são figuras de poder confundidos pela população com figuras de nobreza, mas nem um pouco merecedores dessa expectativa.
Contudo, meu olhar se detém entristecido nesse enorme contingente de pessoas criativas, inteligentes, sagazes e corajosas que produzem milhões de terabites para ficar nessa mesma pauta política.
Como no final da cena "Ser ou nâo ser" de "Hamlet", tudo termina só no pensar e jamais qualquer ação será iniciada. "...o firme, essencial cometimento que essa idéia abalou, desvia o curso e perde-se, até de ação perder o nome". Pois em quase todos eles percebe-se o mero desabafo, um ato de vomitar indigestas informações que absorveram dos canais de comunicação pautados em política, que seus estômagos sensíveis não foram capazes de assimilar.
Assim repercutem, repetindo o óbvio e a conclusão evidente, com palavras ligeiramente inéditas, coroando desfechos confortavelmente generalizadores. Apetrechados de algum estudo e certamente tendo lido um punhado de livros, é claro que têm a acuidade suficiente para identificar as distorções sociais e, até mesmo, certa sensibilidade para se indignar. Mas, é como se a cada nanosegundo uma revolução sucumbisse sob uma avalanche de palavras.
Todos esses talentos dedicados à pauta política, atualizados com a última bombástica e revoltante irrelevância, funcionam como agentes de amortecimento da catarse social.
*
Banalizam ao invés de recrudescer. 
Arrefecem a ação quando a restringem à discussão.
Relegam a revolta ao limbo do inconsciente.
Cicatrizam feridas que não deveríamos jamais permitir que fossem saradas.
*
Só queria um gesto de cada um deles.
Daqueles que não fossem os mesmos que deixam os carros sobre calçadas, que não separam o próprio lixo, que não vivem apenas para produção de sucata, que já não vivem sob o teto de seus pais, que não sobrevivem por força de ações amorais, que não são capazes de ferir por seu time de futebol, que não aproveitam sinais amarelos e não dirigem embriagados, que não vivem de proventos públicos, que não admiram celebridades promíscuas nem heróis sem decência, que não encenam personagens éticos e são capazes de atos de altruísmo. Só pediria a cada um dos restantes um simples gesto muito maior do que todas as suas palavras, para, enfim, ter um mundo decente prá se viver.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ltda. Cia.

Aquele que ama,
Sem ter a quem dar,
É como um cometa
Sem porto e sem lar,
Que a todos ofusca
Sem nunca parar.
.
Só, nas solidões cósmicas,
Vejo doentes os amores.
Ciúme, o amor que é cego.
Ódio, o amor enfermo.
.
Só, nas solidões cósmicas,
Deixo longe os meus medos,
Da dor, o amor sem rumo,
Da esperança, o amor que sonha.
.
Só, nas solidões cósmicas,
Meu viver é amor que aquece,
Meu morrer é amor que luta
E saudade o amor que espera.
.
Só. percorro cantos do espaço,
Na solidão do negro brilhante,
Qual cometa inesperado
Chega e vai no mesmo instante.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Depois do Fim

Pode estar chorando.
Pode estar sofrendo.
Quando o amor acaba,
Não interessa o que está sentindo.
.
Pode estar perdido,
Pode estar sózinho.
Quando o amor termina,
Não importa mais o seu destino.
.
Pode estar sofrendo,
Dar um tiro na cara.
Quando o amor se apaga,
Não interessa o que está fazendo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Bandeiras Por Toda Parte

SINOPSE
A cada dez minutos
nos deparamos com uma
missão a ser conduzida.
No ar sem a menor brisa,
parado e morto, a bandeira tremula
completamente esticada à minha direita.
Sequer chicoteia ou entorta,
só tremula, percorrida por pequenas ondas
por inteira de um lado ao outro,
presa apenas pelo cordão de seda
nas duas pontas esquerdas.
Cada letra de seu dístico claramente legível.
Cada figura geométrica colorida completamente distinta.
Esticada e firme contra toda a gravidade,
em meio ao ar estático,
parece gerar sua própria energia eólica
vinda de lugar algum e indo para lugar nenhum.
Ao redor de um facho de luz,
indelevelmente presente
e originado de nenhum ponto identificável,
que a separa e distingue do universo,
só o mastro longo e firme vibra incontido,
na esforçada função de impedir
que a bandeira finalmente se liberte e voe,
reta e tremulante como sempre.
Uma bandeira dessas aparece

de vez em quando em minha frente,
pedindo que eu a empunhe.
Basta que esteja desprevenido,
minimamente sensível
ou levemente desembotado,
que me aparece uma bandeira dessas
pedindo para ser empunhada.
Basta um evento torto
a me despertar da letargia
e lá está.
Até quando estou dormindo.
Mesmo quando estou só pensando.
Sempre que saio um pouco.
É bandeira por toda parte.
Nenhuma maior que a outra,
nem mais nem menos colorida,
todas de igual valor,
todas igualmente razoáveis,
justificadas e gloriosas.
Tantas em tão diferentes cores e padrões,
para propósitos tão iguais.

Uma bandeirada infinita
pedindo para ser empunhada.
Logo para mim
e eu exclamo por dentro
quanta honra e distinção,
hipnotizado pela força da figura
que suscita à ação imediata
e acende um ímpeto
de atender ao convite de uma vez
e empunhar o mastro,
fazer parte daquele frêmito,
representar aquela idéia,
pactuar com aquele ideal,
enfrentar aquela luta,
dar fim àquela insensatez,
estancar aquele desperdício,
penalizar aquele crime,
iluminar aquela ignorância,
concretizar aquele sonho,
mitigar tanto sofrimento,
salvar aquelas vidas,

redimir aqueles pecadores,
reunir essa comunidade,
conduzir aqueles perdidos,
canalizar aqueles esforços,
aglutinar aquelas mentes brilhantes,
recuperar aqueles viciados,
desmascarar aqueles farsantes,
aproveitar aqueles talentos,
sublimar aquelas energias,
sacudir aqueles adormecidos,
oportunizar todos os empreendimentos nobres,
identificar, denunciar e eliminar todos os empreendimentos vis,
limpar aquela sujeira,
libertar aquele inocente,
honrar aquele princípio,
cobrar aquele compromisso,
consertar tudo o que está estragado e renovar tudo o que está desgastado,
ajudar igualmente o próximo, o distante e o diferente,
criar condições,
gerar movimentos,
apaziguar ambições,
motivar aqueles inertes,
reparar aquela injustiça,
jamais comer qualquer coisa que tenha sido arrancada da liberdade.
E mais.

Tanto mais a todo momento,
quanto mais permaneço vivo.
Cada uma, bandeira certa
e no formato exato de minha mão,
nela cabendo como se para ela fosse criada,
na medida exata de meu talento e capacidade.
Assim, a todo momento,
surge uma bandeira em minha frente,
pedindo para ser empunhada.
Mas, porquê ainda estão lá, tremulando solitárias?
Por incompetência, medo ou mera impotência.
Por preguiça, sossego ou simples inércia.
Por isso continuam fincadas por aí,
essas testemunhas de minha frustração.
Vá lá.
Pego uma e levo adiante.
Vou perceber o quanto é leve.
No início eufórico.
Erguida acima de meu interesse.
Esqueço que tenho o trabalho do dia,
sem o qual vou perecer
e perder tudo o que juntei.
Marcho movido pela certeza daqueles que nada temem
pois carregam a pureza da verdade.
Vou precisar dela,
no caminho que terei de percorrer
segurando bem alto a bandeira.
Montanhas de burocracia,
selvas de interesses mesquinhos,
desertos de corrupção,
pântanos de legislação,
tocaias de aproveitadores em estradas lamacentas.
Minha denúncia vai empacar
no primeiro boletim de ocorrência
modorrentamente preenchido e imediatamente esquecido.
Meu esforço vai se perder
no meio de prioridades suspeitas e discutíveis.
Minhas idéias vão perecer
por não se prestar a dar lucro a alguém.
Meu projeto vai afundar
por falta de amparo da lei
e na inexistência de lei.
Meus argumentos vão esmorecer
de encontro a paredões de indiferença.
Minha veemência engasgada

pelo conformismo dos cidadãos.
Minhas armas quebradas
na couraça de autoridades impotentes.
Meus punhos cansados
de esmurrar a porta dos palácios.
A outra opção
é não pegar nenhuma
e passar o resto de meus dias perseguido
pelas bandeiras por toda parte.
A cada momento tendo que fugir de alguma
e a cada vez sufocando
um enorme sentimento de impotência
ao retornar para meus dias sossegados

domingo, 2 de agosto de 2009

Sonho Antes do Fim


Sonho Antes do Fim

(abril/2001)

.

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Sonhei com o demônio a noite passada.

Estava entre turbas de mendigos invadindo jardins de colchões king size no meio da noite. Estava sendo sugado por uma megera magra com cada pedaço do corpo chagado de espancamentos, ela mesma prendendo em um armário um menino sem pés que chorava. A velha fechava a porta com força, forçando o toco da perna com força para dentro, dizendo "fique quieto, meu filho" e ele dizia "dói, mãe", o "dói" abafado e o "mãe" aberto por cada pancada na porta, e ela sorri para mim/demônio como quem se desculpa.

And the devil say. Pois falou em bom inglês, nova linguagem dos céus, bem ali entre as pessoas estranhas que me acolheram depois que minha casa foi incendiada, mas não lembrava nada daquilo. Disse depois de mandar um forte abraço a todos vocês. Disse que sempre fomos enganados.

Enumerou cada um de vocês, nome por nome todos vocês, a quem deveria transmitir esse abraço apertado e dizer, enquanto suas palavras eram ilustradas por cenas de banhos de chuveiro no meio de minhas avós quando jovens de corpos firmes e desejáveis carnes nuas roçando úmidas a minha pele, entre brancas motocicletas em dias de chuva, depois de penetrar uma virgem enquanto ela urinava como um rio quente, acordando assustado com o gozo, disse enfim que sempre estivemos errados quanto ao bem e mal, céu e inferno e essas coisas.

Disse que eu sabia por quê.

Posso estar doente. Posso saber.

Disse bem claro para que não esquecesse ninguém, vocês e todos os outros. Se esquecesse alguém, não faria mal. Ninguém é importante para o demônio. Ele parece gostar de quem é diferente. Disse que ele mesmo era um bosta, antes que eu disesse o que pensava por ele ter surgido assim no meio de decadência, ma só assim provou quem era.

Disse de um jeito extremo de dizer.

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Minha mãe não deu prá deus,

práele se dizê meu pai.

Iria falá cum ele, se pudesse.

Se pudesse ir pru céu.

Mas num conheço ninguém lá.

Iria pru inferno,

onde conheço todo mundo,

onde estão todos meus amigos.

Onde sei, não tocam beatles.

Como num tenho pai nu céu.

e todos os que tive morreram,

vai que pai nenhum me sirva mais.

Deixa prá lá sê filho.

Pois minha mãe deu prum homem

igual como qualquer um

e Deus não tem nada comigo.

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Estou são. Vocês e os outros é que estão doentes. Doloridos até necrosar os sentidos. Na orfandade. Dor de estar aqui sem eira nem beira, coisando esse mundo como se não fosse daqui.Seus sentidos mortos não estão nem aí para o sentido das coisas, ficam insensíveis e tudo. Gostam, sim, de cortejar a morte e de matar sem mais nem menos, nem por capricho. Disse... alguma coisa tão importante... tão difinitiva...

Acordei assim por isso. Vendo aquela parte dela que é dúvida escondida. Como o objeto guardado num envelope de papel pardo tão grosso e resistente quanto pequeno e colorido por impressora a jato de cera. Encaixado entre as páginas dum livrinho de reza que um dia fora rezado por seu pai já falecido. Acomodado entre outros envelopes, tão engrossado por lembranças que os cantos rasgaram. No meio de agendas antigas, todas parecendo tão infantis quanto decoradas por modismos ultrapassados. Tudo dentro de uma caixa de sapatos. Na verdade uma sandália branca bonita de usar e ficar parecendo uma deusa grega, pelo menos era o que achava quando enrolava as tiras na perna, usadas poucas e sacrificantes vezes por causar ferimento no dedo mínimo. A caixa, enfim, soterrada por blusas velhas e outras roupas de inverno, enfiada fundo no canto da prateleira mais alta do guarda-roupa, encerrada na porta raramente aberta. Lá onde pensava estar esquecido.

Mesmo depois da luza apagada e da porta do quarto bem fechada, de ir para a sala e ligar a tevê, mesmo assim não esquecia. Ou, de tanto ritual mais lembrava.

Até quando chego diferente dos outros, como uma aproximação pressentida desde o segundo em que saio do trabalho, vindo até surgir pela rua e ranger o portão para entrar. Mesmo quando sorrio, abro os braços e beijo igual não a visse a um século, intenso como se houvesse cruzado um oceano só para estar com ela. Mesmo quando geme aos meus afagos. Mesmo assim recorda o sonho antigo. Muito especialmente aquele.

Não que quisesse. Achava que estava esquecido, achava mesmo que podia ser guardar daquilo. Tentava de todas as maneiras, mas com a letra dessa canção a memória ocultada, morta e reprimida, voltava a incomodar.

às vezes, precedida da insatisfação com tudo o que fazia. Mesmo quando fazia o melhor amor e tinha tudo o que queria ao seu redor. Sempre arranjava uma desculpa para não gostar mais, bebendo pessoas como se fosse sede a matar e, saciada, soterrasse o poço para ninguém nunca mais. Logo depois, fazia de si o que queria, amando qualquer outro que não fosse o mesmo de sempre.

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Menina, quase mulher, ainda pouco mulher, apesar de perto dos quarenta. Ainda não.

Gostava daquele da lembrança. Gostava sem saber do quê. Da criancice dele, bobo de dar dó. Tão criança como quando deitado sobre o braço, apoiado na mesa do bar, no meio das latas de cerveja que podiam entornar sem medo, de tão esvaziadas. O cabelo negro grisalho, escorrendo sobre o tampo. A camisa listrada com o punho dobrado duas vezes empapada de suór nas axilas. A felicidade dele, festejando tão a seu modo, com maconha e bebida, a carteira de motorista recém conquistada. Ela olhando maternal para ele e para a lata da vez meio bebida, girada entre os dedos e a cabeça rodando de fumo, feliz por ter ajudado a conseguir. Gosta de se fazer mãe dele e quando a mãe dele dizia que ela era a última esperança do filho se regenerar, parar de vez com as porcarias e pensar na vida. A pobre mulher olhava para os dois com os olhos molhados e as mãos postas como quem dá graças

E como ela gostava de coisas que só ela sabia gostar. Como distribuir bisnagas de seu adoçante preferido por todo lugar aonde ia. Comomarca registrada. Sempre sabendo exatamente onde estavam guardadas em cada lugar. Seja na casa onde vivia, lá com o marido viado/ausente/insosso/compulsório/adequado e os três filhos viviam. Na casa da mãe, ansiosa/metida/suscetível, onde ia só aos sábados à tarde para intermináveis reuniões de família. Na casa dele barrigudo/amante/comiserável, guardado na cristaleira como num panteão de honra. E ela, insaciada/suicida/gorda/devaneante e mais, represada/vazia e tudo, agindo sempre como se pertencesse de verdade a cada um desses lugares e levantar e ir ela mesma apanhar no armário ao lado dos copos, no armário ao lado dos temperos, na porta da geladeira ou na cristaleira, sorrindo para todos aquele riso que sabia o mais infantil e cativante igual com quando era menina. Sempre levando na bolsa uns envelopes de adoçante em pó para o que desse e viesse.

Gostava, também, de saber que tinha uma toalha só sua, roupão de banho e umas calcinhas esperando ao lado de um sabonetinho aberto para ficar tudo cheiroso, num guarda roupa de solteiro no bairro de trabalhadores lá adiante. Segue em frente pelo caminho dos elefantes que passa por trás de sua casa, que não tem erro. Ou ter para lembrar do seu desodorante caro predileto e do condicionador apropriado ao tipo e cor de seu cabelo, esperando num armário de banheiro lá para os lados da periferia. Lembra da cama simples de solteiro onde ninguém imaginaria que pudesse deitar, mas onde se refestelava sob o edredon que ela mesma havia comprado para os dois, iniciando a vida a dois que sonhavam sonolentos no torpor do depois. Refúgios secretos, vida paralela para viver a hora que quisesse e pudesse dar uma fugida. Aquele homem estranho e perigoso, bêbado a fazer de todos os bares via sacra obrigatória, barrigudo de calça abaixo da cintura, de vida enrolada, maconheiro contrário a todos os valores e para os quais fugia. Homem tão diferente dela.

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O que sabem vocês, quadradinhos babacas e inúteis?

Por gostar, ainda guardava uns pedacinhos de papel aparentemente sem importância, sem o nome dele nem nada. Só ela sabia por que estavam ali e qual o significado daquele específico sinal. Como o folheto de trava anti-furto pego da mão de uma criança, no trânsito, naquele dia quente e suado de fevereiro a caminho do motel, quando era na academia da associação que devia estar. Bem dobrada, amarelada, ainda recendendo medo de ser descoberta, o prazer de sentir o saco dele, mole e grande, batendo em sua bunda enquanto. Aquela carteira de aprendiz de motorista marcando o dia derradeiro para aquele dia quente e suado de fevereiro.

Tem coisa que vale a pena gostar. Tem coisa que vale a pena fazer justo por não gostar. Se não tem gostar, pode ficar tão infeliz que deseje morrer. Aí é morrer ou mudar. É desgosto.

Agora acontece de ler os poemas que escrevo. Ela, tão segura de que o fim havia chegado há muito tempo e só estava se estendendo indefinidamente à sua frente sem nenhuma esperança de mudar ou melhorar. Logo ela, que havia encontrado o fim a meio caminho da vida e nada mais importando. Logo naquela altura, depois de ter feito tanta coisa estranha, errada e suja. Depois de se entregar no escuro da praia, de comer a carne onde colhe o pão, de chegar ao ponto de nem caprichar na credibilidade das mentiras para suas ausências. Logo agora! Apareço do passado, meio como filme assistido muitas vezes, dizendo assim essas coisas com gosto de para sempre.

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Digo não me deixe nem um segundo,

só fique assim comigo, quente e meiga,

pois nunca fiquei tão só como agora.

Era assim, sempre meio, toda vida e não sabia.

Precisei saber como é ser completo,

comparando antigas meias vidas

com a vida inteira de agora.

Sou meio, metade, incompleto e pouco,

se não fica assim comigo, fé e força.

Faz-me todas as faltas, deixa todos os vazios,

quando não está todo momento comigo.

Nada faço, digo ou vivo, quando está distante.

Deixo incompleto, não tenho a dizer,

vivo tudo pela metade, meia vida, todo só.

Sei que tenho amado errado,

confesso e professo querer amar direito.

Tenho amado quase predatório,

vingativo, selvagem e tolo.

Até aqui nunca amei direito,

nem um pouco.

Mas achava que amava tudo

perfeitamente e todo,

mas não amava nada nem coisa nenhuma.

Faltava tudo no amor que sentia,

doçura e carinho em cada gesto,

paixão que afaga eternamente.

Faltava compreender.

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Calar essas vozes dos sonhos. Fazer gostar sem mais desespero, sem olhar para trás. Assim devia ser. Sem nenhum outro lugar onde quisesse ir, ou onde houvesse deixado adoçante e outras coisas, esquecendo as roupas nos armários imundos, cheirando guardado, com pessoas erradas, pelos motivos errados, por qualquer motivo.

Era tudo que possuía, assim possuída por qualquer um. Mensageiro de saudações do diabo ao mundo infernizado, esperava por mim e que todo o passado fosse ilusão, vivido a matar o tempo até que chegasse quem dissesse palavras assim, arrebatadas por amor cego. Enquanto não chegava, que viesse qualquer um, sem lógica, critério ou motivo. Qualquer coisa e todas beirando o desespero de quem cansou de esperar.

Agora resta viver entre as memórias dela, ainda visíveis nas cicatrizes longitudinais em seu ventre, donde retirou marcas de gestações inconseqüentes mas não evitou filhos de outros homens, onipresentes pelos cantos da casa e rugas da pele. Sujeitos ausentes, liberados das exigências da paternidade pela contínua dança das cadeiras. Tantas pegadas deixadas por aí, canhestras e lacônicas. Horas de fita VHS por onde se esgueiram. Peças de roupa, ferramentas, objetos e coisas gastos por muito uso, guardadas nos armários e gavetas, como se aguardando a volta dos tempos de desesperar.

Trafego entre essas memórias como um sonâmbulo. De vez em quando ouvindo uma delas escapar no meio de uma conversa qualquer. Para juntar mais um homem aos tantos de sua vida, cada outro a mais comprovando ser apenas mais um. Qual teria deixado algo pelo que voltar? Dentre tantos, qual é real?

No fundo, com medo. Desejando que nunca tenha sido feliz. Que não disponha de momentos merecedores de lembrança. Torcendo para não estar andando pelas mesmas pegadas e cometendo os mesmos erros.

Pode dizer que sou fraco, pois fraco devo ser. Tenho medo de lembranças, não havendo covardia maior. Tenho medo de ser apenas um louco, sedado, amarrado numa cama de hospício, alucinadamente sonhando uma vida perfeita e apavorado com a possibilidade de despertar.