Suplício

 
Lembro daquele sujeito pequeno e cheio de marcas por toda a cara. Era agitado como um animalzinho faminto frágil demais para caçar sua própria comida. Era 1975 o ano em que ele morou na Austrália e caçava prostitutas no cais do porto. Jogava os corpos nas rebentações das ondas sobre as pedras e ficava imaginando como eram triturados no mole e duro tanto bate até que extingue. Dizia que tudo era droga. Ainda escuto a voz rouca e o tom imperativo e vejo seu olhar esquivo. Tudo é mesmo um composto químico qualquer que  altera seu corpo e sua mente. Seja água que é H2O.  O feijão com arroz. O PCP e o LSD que moviam seu ímpeto. Não era ele o desgraçado que estrangulava as meninas. Era ele e mais toda a droga sem razão e sem motivo.
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Voltou para casa quando acabou o dinheiro e não podia mais ser advogado nas horas não vagas. Louco demais. Para uma cidade sem mar e para sorte das putas de Curitiba. Voltou para: o quartinho de solteiro e o prato de comida da casa dos pais.
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Mesmo que enfiasse nele agulhas elétricas em cada terminal nervoso por um século. Mesmo que nessa faina trabalhasse cem anos a aplicar todos os torniquetes e ácidos beirando sua morte. Nem assim lhe obteria redenção.
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Havia aquele lourinho com cara de bebê. Lembrei dele por ser o oposto completo do rato curitibano. Tinha a idéia fixa mais mastigada e cansada que se possa imaginar: garantir que fosse servido no inferno pelo maior número possível de serviçais. Nem o primeiro nem o último a atravessar meu caminho. Era especial por ser um estereótipo escarrado e cuspido de um assassino em série: um magrela esquivo afeminado com todos os motivos freudianos para ser desagradável ao toque como um cadáver de ontem.
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Pelo menos tinha um motivo. Ou o que achava ser uma razão para matar ritualisticamente  sem qualquer lógica cada um dos mais de dez meninos tão iguais a ele mesmo que podiam ser seus irmãos. Essa conversa de ser servido no inferno pelas almas que desencarnasse... Achei o sujeito como quem fareja a refeição favorita. Inteligente bastante para garantir um emprego público que pagava bem. Vida de adultecente morando com os velhos pais. Trabalhei nele por um ano até que chegasse ao estágio ideal. O carro desgovernado provocou acidente quase fatal e a policia ainda encontrou crack escondido. Puxou noventa dias de cadeia junto a criminosos que se sentiam melhores quando o seviciavam e surravam. Quando voltou à repartição seu computador foi usado para entregar dados sigilosos ao partido de oposição ao governo. Sem trabalho e vigiado pela polícia. Ninguém no trabalho duvidava de sua culpa e a polícia farejava o assassino. E tudo fez sentido para qualquer pessoa que o conhecesse quando o fogo consumiu sua casa com os pais dentro. Sofrimento redime. Bem vindo a esse vale de lágrimas.
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Não lembro nenhuma frase dele para usar como rótulo e facilitar a visualização do personagem nessa narrativa. O silêncio ruidoso à sua volta era como a vibração de uma aura escura e pegajosa. Como alguém podia se deixar enganar a ponto de se deixar matar por um ser tão absoluta e evidentemente repulsivo? Se ele pudesse verbalizar uma frase que resumisse a si mesmo ele diria que Toda vítima é culpada.
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Confesso ter alimentado esperança de poder redimi-lo. Parecia tão fácil arrancar aquela maldade evidente e superficial que aflorava nele. Aflorar. Arrancar do caule a flor madura. Fácil como extirpar o câncer que se oferece à superfície da pele e poupa os órgãos internos. Foi assim que imaginei e preparei para ele os mais diligentes procedimentos redentores. Acomodei-o docemente onde jamais seria encontrado pelas maldades do mundo e onde seus gritos suplicantes jamais seriam ouvidos. Emprestei das ciências físicas e químicas os instrumentos e fórmulas capazes de despertar a mais pura sensação remissória. Para isso pesquisei em meu pouco tempo livre e gastei meu pouco dinheiro sobrando. Pois havia uma nobre obra ali.
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As implicações de meu trabalho sagrado eram tantas quanto as almas que permaneceriam livres de servidão no inferno.
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Por à prova todo meu conhecimento e fé. Finalmente provar lâmina afiada por toda minha vida. Tenho a infinita paciência de quem tem fé e cada vasta porção de paciência foi demandada e consumida durante meus anos de dedicação àquela alma irredutível. Até precisar aceitar o inevitável: tudo inútil. Sua maldade era tão profunda quanto aparente. Se ao menos tivesse chegado mais cedo. Se o encontrasse antes que os pecados se acumulassem e se instalassem em sua alma. Não havia mais esperança para aquela alma de maldade empedernida.Nenhum trabalho é perdido quando toda experiência é instrutiva. Aprendia enquanto aquele lourinho apodrecia em vida diante de mim para revelar a verdade. Não fracassei quando deixei o lourinho seguir ao encontro de seus servos. Minha fé na redenção dos homens não é maior do que meu fracasso. Essa é uma das muitas frases que me definem
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A verdade não surge facilmente no espírito dos homens porque nenhum homem tem espírito para abrigá-la. Temos apenas uma alma tosca que serve de pouca coisa mas tem grande valor por ser a semente do espírito. Deve ser   bem trabalhada pela disciplina e pelo sacrifício. Antes de ser espírito nós temos todo o trabalho de deixar de ser animais e para os homens escolhidos cada passo de suas vidas conduz ao inevitável destino. Não é uma escolha. O livre arbítrio é prerrogativa de animais sem eira nem beira.
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Foi docemente que juntei os retalhos esparsos de mim até compor um homem completo. Conto como foi de meu jeito cifrado. 
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Sempre estranhei a admiração das pessoas pelo pouco sofrimento infligido a Cristo durante sua via crucis. Algumas chicotadas numa época em que se utilizava esse castigo por praticamente qualquer motivo. Carregar uma cruz pela cidade quando qualquer escravo era submetido a esforços muito maiores. Ser crucificado assim como todos os transgressores das leis daqueles tempos. Foi de perguntar sempre que descobri que ele já era meio divino muito antes de ser judiado. Era homem sem pecado e sempre esteve a um passo do Paraíso. O suplício foi o acabamento final em sua alma cintilante.
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Sempre soube identificar o momento na vida de qualquer pessoa em que ela é absoluta e completamente perfeita. Descobri essa acuidade depois de muitas epifanias. O auge de nossa beleza e perfeição acontece apenas num certo dia de nossas vidas e nunca mais. Ocorreu com aquela mulher num dia de adolescência. Aconteceu com aquele velho num dia de primavera aos vinte e dois anos e três meses de vida. Cada célula de seus corpos estavam perfeitamente saudáveis e fortes. As energias harmonizadas e os pensamentos cristalinos. E com toda certeza cada um de nós lembra desse dia especial pelo resto de nossas vidas feias. O dia em que ainda somos livres dos grandes pecados. Sempre tive a sensibilidade de identificar o preciso momento quando uma pessoa exala plenitude física e mental em todas as freqüências. Apenas não sabia qual a razão de ter essa habilidade e não sabia avaliar o quanto me serviria.
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Tudo isso e minha habilidade para identificar os balbucios enrolados da expressão dos pecados que aprisionam a alma. Como quando os pecados resistentes imploram que detenha minha obra. Até Freud sabia: a resistência indica onde estão os demônios.
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Sou esse conjunto de Sou feito desses quatro pilares de sustentação. Atributos. Seria pecado supremo desperdiçar dons raramente concedidos e ainda mais raramente associados em um só ser humano. Sou aquele que redime os pecados da carne e torna a alma merecedora do Paraíso.