quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Austregésilo Carrano e o Canto dos Malditos

Sou encadernador clássico, vocês sabem.
Hoje, enquanto restaurava um velho livro, encontrei algumas folhas dentro dele.
Quando digo que esses livros oficiais de cartório "contam a história dinâmica de nossa Sociedade", podem achar que estou exagerando a importância desses livros e assim aumentando o valor de meu trabalho.
Agora mesmo estou pronto para provar a sinceridade dessa minha perspectiva.
As folhas encontradas são a Escritura Pública de Emancipação de AUSTREGÉSILO CARRANO BUENO. Ele mesmo, o próprio, o Austregésilo Carrano autor de "Canto dos Malditos".
Fiquei emocionado e conto o motivo.
Saibam, todos aqueles que ignoram sobre esse personagem que habitou extremos toda vida, que Carrano nasceu em Curitiba, no bairro de Santa Felicidade e na Rua José Culpe, no dia 15 de Maio de 1957, filho de Israel Ferreira Bueno e Maria Carrano.
Saibam, ainda, que tinha 19 anos de idade no dia 9 de Junho de 1976, sendo então menor de idade e incompetente para praticar atos civis, quando lavrou no Cartório do Cajuru esta Escritura Pública de Emancipação para "que fique apto e possa livremente praticar todos os atos de sua vida civil".
Agora, saberão vocês a importância desse pedaço de papel timbrado-assinado-carimbado-rubricado-registrado?
Têm alguma idéia da dimensão desse ato jurídico na vida de Austregésilo Carrano?
Pois sacramenta seu direito de cuidar da própria vida!
Saibam do seu drama pela descrição neste trecho do jornal "O Estado de São Paulo":

"Canto dos Malditos narra a via-crúcis do escritor paranaense pelos hospícios de Curitiba e do Rio de Janeiro. Aos 17 anos, em 1974, Austregésilo era um jovem rebelde, habituado a fumar maconha e a usar medicamentos de uso restrito. Ao encontrar uma trouxinha de maconha na jaqueta de Austry, como era conhecido, o pai do escritor decidiu interná-lo em um hospital psiquiátrico da cidade, à força, para desintoxicação.

Ao longo de um ano o escritor foi submetido a sessões de eletrochoque e obrigado a ingerir altas doses de medicamentos. No fim do tratamento, o jovem rebelde e cheio de vida havia se transformado em um ser abobalhado e sem vontade própria. Quando saiu da clínica, Austry já não tinha condições de conviver com as pessoas ditas normais e acabou sofrendo também nas mãos da polícia. Até os 20 anos, ele foi internado em várias instituições psiquiátricas."


Com esse papel nas mãos, ninguém mais haveria de interna-lo em instituições medievais onde era entupido de drogas e torturado, como se o horror pudesse curar, como se houvesse algo dentro dele para curar.
Livre e senhor de si, Carrano foi lutar. 

Conheci o Carrano quando cuidava da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) em Curitiba. Queria filiar-se para autorizar e cobrar seus direitos de autor por adaptações de seu livro em teatros pelo País, culminando com o filme "Bicho de Sete Cabeças" onde foi interpretado por Rodrigo Santoro.

Não vou ficar em detalhes sobre o Carrano, pois sua história está no seu livro.
Fico apenas no cara que aparecia sempre nas mesas de bar da noite curitibana. Você estava bebendo uma no Bar do Alemão e o Carrano encostava, oferecendo o "Canto dos Malditos", dando um trailler de sua saga, agitando sua magnífica bandeira contra a internação psiquiátrica e os hospícios dantescos. Na feirinha da Ordem, aparecia nos grupos de turistas. Na porta do Guairinha era figura manjada. E por aí.
Era sempre meio inconveniente, falando francamente, desequilibrando nossa precária sanidade com suas vivências traumáticas. Quando ele partia como um raio para outra mesa, a gente sempre demorava uns minutos para voltar a falar as tolices da pauta de mesa de bar.

Aquele ser heróico e trágico, com o mesmo olhar de Peter O'Toole no filme "Lawrence da Arábia", um toque de messiânico e torturado sob o peso esmagador de uma bandeira gigantesca, sempre tão menino.

Quando o documento caiu do livro em minhas mãos, logo eu, que sabia de sua história e saberia compreender a importância desse evento em sua vida, entendi que precisava reviver um pouco o Carrano tão superficialmente abordado na internet.

Morreu em São Paulo, no dia 27 de maio de 2008, aos 51 anos. Estava internado no Hospital das Clínicas e faleceu em razão de uma infecção generalizada resultante de um câncer no fígado.

domingo, 17 de novembro de 2013

Doris Lessing está eterna

O título deste blog não tem nada a ver com agência de encontros, nem agencia sentimentos. É citação do livro de Doris Lessing "Os Agentes Sentimentais" , o sexto volume da série "Shikasta". Toda a série é dedicada a descrever eras de história num planeta torturado por influências decadentes e degeneradoras, disputado por três civilizações espaciais.

Admiro Doris nesse trabalho, muito mais do que em seus romances e contos mais ao agrado da crítica literária.

Em "Shikasta" ela é muito mais direta quando denuncia nosso estado de escravidão mental, com suas correntes ideológicas e grades de proselitismo que nos aprisionam, limitam e exploram. Ler a série é aprender a pensar por si mesmo, reconhecendo de imediato a razão por trás da ação ou do pensamento, desmascarando a mentira e a falsa explicação. É valorizar o pensamento substantivo, com substância, desprezando o pensamento  adjetivo, que pretende apenas emocionar, desviar atenção e enganar.

Engajado em sua luta por Lucidez, arrisco até um "fanfic" nos artigos "Guerra entre Poderes", imitando a visão despida de preconceitos de seus personagens canopianos.

No livro "Os Agentes Sentimentais" ela não deixou pedra sobre pedra nas muralhas ideológicas. Na página 39, descreve  o tratamento de desintoxicação de agentes infiltrados num mundo muito parecido com o nosso, no momento em que sua reações eram avaliadas ao ler um discurso:

"Era um jovem de Voliednadna. uma criatura robusta verde-acinzentada, que não demonstrava nenhum sinal de nervosismo, mas começo imediatamente a erguer a mão para não perturbar os fios do monitor.

- Camaradas! Amigos. Sei que posso chamá-los de amigos por causa do que vamos realizar juntos.

Os gráficos e impressos que demonstravam suas reações emocionais estavam atrás deles, onde não eram vistos pelo examinando para não influenciar suas reações, numa grande tela alta. Eu e os examinadores na plataforma o observávamos e ao mesmo tempo podíamos notar a exata situação de seu mecanismo emocional.

Logo no começo ficou evidente que o jovem não ia agüentar por muito tempo, apesar de sua aprente solidez e resistência; à palavra 'amigos' todas as partes de seu organismo reagiram, e 'realizar juntos' o levou quase ao limite.

- ... não, você não está perguntando 'o que é isso?', pois você já sabe. Nós já sabemos.

Mas o jovem já havia fracassado, na palavra 'Nós' sua voz estremeceu repleta de sentimentos.; e a cigarra que indicava Fracasso soou.

Foi seguido por uma mulher forte e bonita, de Volyendesta, cheia de segurança  e sorrisos calmos para todos.

Sobreviveu à primeira passagem, com aquele perigoso 'amigos' deliberadamente inserido; passou por aquele 'nós' sem que as máquinas registrassem mais do que um levíssimo tremor de reação. Ma então a reação começou a crescer...

- Se não concordamos com os motivos do que acaba de acontecer, então devemos concordar com a cura. Estamos aqui reunidos por um motivo, esta situação não pode continuar. Estamos cercados por grosseiras desigualdades, por injustiça chocante, por pobreza terrível e riqueza cínica...

O tom de voz indicava que as lágrimas estavam na garganta e que não ia durar muito. Mas insistiu, embora a impaciência e irritação contra si mesma que apareciam no seu rosto indicassem que ela estava certa de ter fracassado.

- ... Por que somos afligidos desse modo pelos desmandos estúpidos de uma burocracia que geme sob o peso da própria incompetência? Por que numa rua vemos rostos que nunca souberam o que é abrir um envelope com o pagamento do trabalho honesto...

A voz falhou na palavra 'trabalho'; a cigarra tocou. Ela saiu com passos largos, bravamente, mas com lágrimas de desapontamento."

E assim segue o texto, com um discurso de Retórica padrão que segue num crescendo emocional, ideológico e proselitista, e as reações dos examinados.

É só prestar atenção em nosso cotidiano, para identificar situações puramente retóricas, onde as próprias pessoas as utilizam até inconscientemente como artifício para mascarar reais intenções ou racionalizar erros e incompetências. O pior é que dá para sentir, quase ver, o 'pavor' nos olhos desses 'escravos com mil senhores e nenhum'. Pavor de demonstrar não ter a menor idéia do que está falando, de se comprometer de forma irremediável, de perder o precioso pagamento mensal, da própria impotência.

Leia Doris Lessing. Faz proselitismo sim, para ensinar a livre pensar.

Dados de sua Biografia

A escritora nasceu na Pérsia, em 1919, hoje Irã, seu pai era um capitão britânico do exército, mutilado na Primeira Grande Guerra, foi trabalhar no Banco Imperial da Pérsia. Seu nome verdadeiro é Doris May Taylor, tendo emprestado o Lessing de seu primeiro marido. Passou sua infância e juventude na Rodésia do Sul, que na época era colônia britânica que depois da independência em 1980 tornou-se o atual Zimbábue. Integrou as fileiras do Partido Comunista britânico até o ano de 1956, quando deixou o partido por não concordar com a invasão soviética da Hungria que provocou uma repressão de grandes proporções contra o povo húngaro.

Entre suas principais obras está "O Carnê Dourado" (The Golden Notebook) de 1962 em que relata, em forma de diário íntimo, a vida de uma escritora de sucesso. Neste livro é possível constatar traços do movimento feminista que marcou boa parte de sua obra, outra característica de seus romances são os conflitos raciais, devido àsua estada em países da África. "Filhos da Violência", saga de cinco volumes escrita no período de 1952 a 1969, foi inspirada por sua juventude passada em diversos continentes. Outra obra de destaque da autora é a história de ficção científica, também em cinco volumes, "Canopus em Argos Arquivos", que fala de antagonismos entre princípios masculinos e femininos, sobre colonialismo, catástrofes ecológicas em um mundo primordial, escravidão, onde uma civilização evoluída que viaja pelo Universo renascendo em outros mundos tenta amenizar os efeitos nefasto de uma outra civilização predadora.

Sua obra reúne mais de 50 títulos, entre contos, poesias, romances, ensaios, autobiografias e ficção-científica. Outras obras importantes são "A Boa Terrorista" sobre um grupo revolucionário de extrema-esquerda e"Regresso para Casa" (1957), onde faz uma denúncia do apartheid na África do Sul. Há ainda, "The Grass is Singing", "Andando na Sombra", "O Quinto Filho", "Debaixo da Minha Pele" (1997). Outros, como "Memórias de um Sobrevivente" e "A Terra do Velho Chefe" são leituras de profundidade e qualidade, que nos deixam felizes quando começamos, plenos de descobertas ao fruir e tristes por terminar.

A escritora viveu em Londres onde seguiu produzindo obras literárias. Recebeu o prêmio Nobel de Literatura e recebeu como parte do prêmio, 1,08 milhão de euros, dinheiro muito bem vindo, pois durante a maior parte de sua vida enfrentou grandes dificuldades financeiras.

Veja no You Tube sua reação à notícia do prêmio Nobel http://www.youtube.com/watc

Ontem dia 16 de Novembro de 2013, Doris May Lessing partiu para Canopus. Tinha 94 anos.
Dizem que morreu tranquila, sem atropelos e sem apegos.
Desde o dia em que descobri seus livros, lá por 1977, houve uma perfeita identificação entre nós.
Ensinou-me que não havia problema nenhum comigo, que o mundo era essa hipocrisia ideológica mesmo e não havia nenhum problema em não entender as coisas, em ficar à margem do pensamento mesquinho manipulador da mídia, dos Governos e das diversas formas de entretenimento.
Entendi, Doris, valeu. 
E eu juro que durante todo o dia de ontem eu pensei em você, sem saber que morria.