quarta-feira, 1 de junho de 2022

A Liberdade de Escolha

 A Liberdade de Escolha


        Hoje eu briguei na rua. Ou quase.

    Estava me preparando para servir meu prato num restaurante tipo buffet, quando um homem e uma moça fizeram fila atrás de mim. Ele, um senhor sessentão vestido como um classe média, grande e forte. Ela, uma mulher jovem, talvez filha ou mesmo neta.

    Enquanto eu vestia uma luva de plástico, olhei para trás e comentei "é melhor passar o álcool em gel depois de vestir a luva". A moça concordou enquanto pegava uma luva para si, mas o homem respondeu, inflando o peito com arrogância "vou exercer minha liberdade de escolha". Neste momento eu era o único com máscara entre eles.

    Fui me servindo das primeiras saladas, meio incomodado. Não me contive, olhei para trás e disse "liberdade de escolha é um conceito tão importante para se invocar numa fila de buffet de um restaurante muquifo igual a esse, só para não usar máscara e luva!". E o homem não disse nada. Eu completei, alto e claro, já desconfortável ao vê-lo pegando os talheres e se servindo com as mão nuas, respirando e falando com a filha: "você não tem liberdade para sujar e contaminar a comida de todos aqui."

    De novo, silêncio do homem. Eu subi o tom: "e se eu acabei de empurrar de volta uma hemorróida? E se você acabou de empurrar prá dentro uma hemorróida?" E o sujeito quieto, mas a filha nervosa. Olhei para o garçom mais próximo e pedi: "tem que trocar ou higienizar todos os talheres".

    O fato é que eu devo agradecer ao sujeito pelos pensamentos que ele me provocou depois, enquanto eu almoçava.

    O que significa "liberdade de escolha".

    Em primeiro lugar, para escolher é preciso realmente ter algumas opções de escolha. Pois ter a liberdade de escolher é um enorme privilégio, na maioria das vezes.

    Quantas e quantas vezes você não teve nenhuma escolha a não ser aceitar o que as circunstâncias da vida lhe oferecem.

    Você não escolheu morar numa área de risco que pode descer morro abaixo ou ser inundada por um rio. Era sua única opção. Era isso ou ficar na rua. Pode morrer numa chuva mais forte, mas a vida é arriscada mesmo, isso só acontece com os outros, amanhã a vida melhora e vai morar melhor, são algumas racionalizações que nascem da esperança que nos ilude.

    Quando você não tem opção, não tem escolha. Nem mesmo pode escolher entre ficar parado, ir em frente ou voltar. Nem mesmo entre seguir à esquerda ou à direita. Você segue empurrado para onde manda o policial grotesco e violento, o patrão explorador, o cliente infiel, a vida, afinal, que simplesmente nos enreda em cadeias de causa e efeito sem fim de miséria em miséria, de dor em dor, de humilhação em humilhação.

    Poder fazer uma escolha é o maior dos privilégios.

   Nesta pandemia de covid 19, escolher entre usar máscara e não usar máscara, entre tomar vacina e não se vacinar, não é exercer a tal da liberdade de escolha, é um ato de ignorância e da irresponsabilidade do sujeito.

  Tem gente que não tem mesmo a menor ideia do conceito de "liberdade de escolha". E não está nem um pouco interessada em saber! Usa outros conceitos distorcidos por sua maldade para justificar andar armado, cometer ato criminoso, mentir, injuriar, ofender, roubar, explorar, pois usa de forma igualmente leviana e em proveito apenas de si próprio os sagrados preceitos de "liberdade de expressão", "livre iniciativa", "Justiça".

    A gente sempre tem escolha. Não vou negar.

    Desde o brasileiro mais simples, desde o mais miserável dentre nós, até o mais privilegiado, mais rico e poderoso dentre nós, todos temos sempre uma escolha.

    Não é escolher um político em quem votar, pois eles mesmos se escolhem como candidatos e se fazem escolher pelos eleitores usando dos recursos mais custosos à sua disposição. Não é nada dessa grandeza.

    A escolha que sempre temos à nossa frente são mesmo essas pequenas de cada dia, que de tão pequenas nem parecem escolha, mera opção. Parecem até pequenas contravenções, heresias risíveis, mínimas revoluções interiores que estão dentro de nossas proporcionais possibilidades.

    Ou, desde o brasileiro mais simples, desde o mais miserável dentre nós, até o mais privilegiado, mais rico e poderoso dentre nós, nenhum de nós realmente tem liberdade escolha.

    Algumas prisões são coloridas, outras têm flores nas grades, há desde pequenas a enormes e outras sequer têm paredes ou grades, mas ainda são prisões.