segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Um acontecimento fora do ordinário

"As anotações do homem estrela"

Aconteceu um fato extraordinário nestes últimos dias.

Em 1971, escrevi um livro.

Tinha de 14 para 15 anos e vivia em Guarapuava, cidade então pequena no oeste do Paraná. Antes, morei em Curitiba alguns anos e voltar para uma cidade pequena foi o evento mais frustrante e penoso de minha vida. Em Guarapuava havia apenas uma pequena biblioteca, apenas um cinema, frio, vento e ruas de terra por todo lado. Os livros, li todos em pouco tempo. No cinema entrava quando queria e sem pagar, pois envernizei toda a meia parede de lambris ajudando meu avô. A neve queimou a pele de meu pescoço e trago a marca até hoje.

A idéia de escrever não era nova. Escrevi desta vez por ter encontrado um amigo, o Sérgio que, além de ter uma máquina de escrever, tinha um parente dono de editora. Assim combinamos: eu escreveria, ele datilografaria e editaria.

Inventei um personagem de ficção científica e escrevi 606 páginas.

Hoje, este eu não entende o garoto que escreveu aquelas linhas. Quase todo tempo cometendo erros básicos de grafia, muitas vezes de uma ingenuidade atroz e outras tantas mostrando uma sabedoria inesperada. Um talento ele possuía: sabia escrever de forma direta, sem perda de tempo e de primeira. Sequer reconheço aquele menino.

Mesmo antes de ter terminado, a família do Sérgio se mudou para Campo Mourão e ele foi junto. Terminei o livro, mandei para ele e nunca mais ouvi falar.

Em 1977... 1978, encontrei o Sergio na Livraria Guignone, na Rua das Flores, em Curitiba. Conversamos, comemos coalhada na Schaffer, meio constrangidos pelo projeto abortado e ele disse ter perdido os manuscritos numa mudança.

É isso, fim da história!

Se, não tivesse recebido esta mensagem um dia destes:

“””””Bom Dia!
Recentemente, fazendo uma arrumação em casa, encontrei alguns papeis que pertenceram a meu irmão; e neles aparecia o nome de um amigo dele: Pedro Malanski Jr.
E hoje passeando pelo facebook, vi um comentario seu. Buscando mais consegui seu e-mail.
As anotações do meu irmão se referem a um livro que ele e o Pedro estavam escrevendo. Isso se passou em Guarapuava nos anos 70 e 71.
O nome do meu irmão era Sergio, e nós nos mudamos para Campo Mourão em 1972. Meu irmão faleceu em 1980.
Gostaria de saber se voce é o amigo do meu irmão.
Desculpe tomar seu tempo.
Se voce não for o mesmo Pedro, por favor ignore e me desculpe.””””””

Encurtando, como faria aquele Pedro, ela me mandou os manuscritos, com cartas trocadas entre nós.

É uma historia extraordinária.

Mas há alguma coisa nela que me intriga.

Qual o significado desse evento justamente hoje?

NENHUM?

Impossível, nada acontece na minha vida por mero acaso.

FECHOU-SE UM CÍRCULO DA RODA DA VIDA?

Provável, se a vida fosse circular. A minha é uma espiral ascendente de evolução constante e se desenvolve rumo a um objetivo inexorável.

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ?

Impensável, felizmente a vida não deve ser uma repetição maçante de toma-lá-dá-cá, como num inferno pessoal tantalizante.

MORRI E ESTOU PRESO A UM ASSUNTO NÃO RESOLVIDO?

Possa ser, se este assunto me perseguisse compulsivo. Não me lembro de ter pensado nisso ultimamente.

A não ser há uns dias, quando lamentei não conseguir abrir um maldito diskete onde guardei outro livro que escrevi, o “Como uma Pedra Rolando” e fiquei maldizendo os malditos formatos decaídos, usados para perdição da informação.
Nesta hora lembrei desse livro, dos meus sonhos infantis e imaginei o Sérgio em algum lugar do mundo, cheio de filhos e se divertindo de alguma forma. Foi duro saber que morreu num acidente de automóvel em 1980.
É uma merda de vida, às vezes.

A INTERNET É UM FENÔMENO IMPRESSIONANTE?

Sem dúvida, mas é explicação muito fácil, simplista e genérica.

FALTA CABEÇA PARA PENSAR?

Com certeza! Exercito “da refleção à luz mortiça” como falou Macbeth. Não entendo do que estou tratando, me falta estudo e diplomação para entender o fenômeno. “... a viva cor da decisão desmaia”, continuaria Macbeth, se não me restasse a ajuda de amigos para me dar uma luz nessa história.

É UM TAPA NA MINHA CARA?

Correto!

É como se aquele menino surgisse hoje na minha frente e me cobrasse todas as nossas promessas.

Se, com 14, escrevi aquelas tolices de forma incorreta, o que escreveria com 24, 44, hoje?

Todos os textos abandonados, as idéias esquecidas, os projetos recusados...

Sempre achando que o Mundo era ridículo demais para entender o que eu tinha para dizer.

Sempre avesso a me corromper pelo Mercado.

Sempre e sempre me corrigindo e me reescrevendo.

Insatisfeito comigo mesmo, enquanto tanto escritor medíocre faz sucesso.

Preguiçoso de refazer, revisar, depurar.

Sempre uma desculpa envolvendo casar, ter filhos, ao sabor da vida me levar, como qualquer acomodado nos caminhos fáceis.

Pois bate, menino!

Bate forte!

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Austregésilo Carrano e o Canto dos Malditos

Sou encadernador clássico, vocês sabem.
Hoje, enquanto restaurava um velho livro, encontrei algumas folhas dentro dele.
Quando digo que esses livros oficiais de cartório "contam a história dinâmica de nossa Sociedade", podem achar que estou exagerando a importância desses livros e assim aumentando o valor de meu trabalho.
Agora mesmo estou pronto para provar a sinceridade dessa minha perspectiva.
As folhas encontradas são a Escritura Pública de Emancipação de AUSTREGÉSILO CARRANO BUENO. Ele mesmo, o próprio, o Austregésilo Carrano autor de "Canto dos Malditos".
Fiquei emocionado e conto o motivo.
Saibam, todos aqueles que ignoram sobre esse personagem que habitou extremos toda vida, que Carrano nasceu em Curitiba, no bairro de Santa Felicidade e na Rua José Culpe, no dia 15 de Maio de 1957, filho de Israel Ferreira Bueno e Maria Carrano.
Saibam, ainda, que tinha 19 anos de idade no dia 9 de Junho de 1976, sendo então menor de idade e incompetente para praticar atos civis, quando lavrou no Cartório do Cajuru esta Escritura Pública de Emancipação para "que fique apto e possa livremente praticar todos os atos de sua vida civil".
Agora, saberão vocês a importância desse pedaço de papel timbrado-assinado-carimbado-rubricado-registrado?
Têm alguma idéia da dimensão desse ato jurídico na vida de Austregésilo Carrano?
Pois sacramenta seu direito de cuidar da própria vida!
Saibam do seu drama pela descrição neste trecho do jornal "O Estado de São Paulo":

"Canto dos Malditos narra a via-crúcis do escritor paranaense pelos hospícios de Curitiba e do Rio de Janeiro. Aos 17 anos, em 1974, Austregésilo era um jovem rebelde, habituado a fumar maconha e a usar medicamentos de uso restrito. Ao encontrar uma trouxinha de maconha na jaqueta de Austry, como era conhecido, o pai do escritor decidiu interná-lo em um hospital psiquiátrico da cidade, à força, para desintoxicação.

Ao longo de um ano o escritor foi submetido a sessões de eletrochoque e obrigado a ingerir altas doses de medicamentos. No fim do tratamento, o jovem rebelde e cheio de vida havia se transformado em um ser abobalhado e sem vontade própria. Quando saiu da clínica, Austry já não tinha condições de conviver com as pessoas ditas normais e acabou sofrendo também nas mãos da polícia. Até os 20 anos, ele foi internado em várias instituições psiquiátricas."


Com esse papel nas mãos, ninguém mais haveria de interna-lo em instituições medievais onde era entupido de drogas e torturado, como se o horror pudesse curar, como se houvesse algo dentro dele para curar.
Livre e senhor de si, Carrano foi lutar. 

Conheci o Carrano quando cuidava da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais) em Curitiba. Queria filiar-se para autorizar e cobrar seus direitos de autor por adaptações de seu livro em teatros pelo País, culminando com o filme "Bicho de Sete Cabeças" onde foi interpretado por Rodrigo Santoro.

Não vou ficar em detalhes sobre o Carrano, pois sua história está no seu livro.
Fico apenas no cara que aparecia sempre nas mesas de bar da noite curitibana. Você estava bebendo uma no Bar do Alemão e o Carrano encostava, oferecendo o "Canto dos Malditos", dando um trailler de sua saga, agitando sua magnífica bandeira contra a internação psiquiátrica e os hospícios dantescos. Na feirinha da Ordem, aparecia nos grupos de turistas. Na porta do Guairinha era figura manjada. E por aí.
Era sempre meio inconveniente, falando francamente, desequilibrando nossa precária sanidade com suas vivências traumáticas. Quando ele partia como um raio para outra mesa, a gente sempre demorava uns minutos para voltar a falar as tolices da pauta de mesa de bar.

Aquele ser heróico e trágico, com o mesmo olhar de Peter O'Toole no filme "Lawrence da Arábia", um toque de messiânico e torturado sob o peso esmagador de uma bandeira gigantesca, sempre tão menino.

Quando o documento caiu do livro em minhas mãos, logo eu, que sabia de sua história e saberia compreender a importância desse evento em sua vida, entendi que precisava reviver um pouco o Carrano tão superficialmente abordado na internet.

Morreu em São Paulo, no dia 27 de maio de 2008, aos 51 anos. Estava internado no Hospital das Clínicas e faleceu em razão de uma infecção generalizada resultante de um câncer no fígado.

domingo, 17 de novembro de 2013

Doris Lessing está eterna

O título deste blog não tem nada a ver com agência de encontros, nem agencia sentimentos. É citação do livro de Doris Lessing "Os Agentes Sentimentais" , o sexto volume da série "Shikasta". Toda a série é dedicada a descrever eras de história num planeta torturado por influências decadentes e degeneradoras, disputado por três civilizações espaciais.

Admiro Doris nesse trabalho, muito mais do que em seus romances e contos mais ao agrado da crítica literária.

Em "Shikasta" ela é muito mais direta quando denuncia nosso estado de escravidão mental, com suas correntes ideológicas e grades de proselitismo que nos aprisionam, limitam e exploram. Ler a série é aprender a pensar por si mesmo, reconhecendo de imediato a razão por trás da ação ou do pensamento, desmascarando a mentira e a falsa explicação. É valorizar o pensamento substantivo, com substância, desprezando o pensamento  adjetivo, que pretende apenas emocionar, desviar atenção e enganar.

Engajado em sua luta por Lucidez, arrisco até um "fanfic" nos artigos "Guerra entre Poderes", imitando a visão despida de preconceitos de seus personagens canopianos.

No livro "Os Agentes Sentimentais" ela não deixou pedra sobre pedra nas muralhas ideológicas. Na página 39, descreve  o tratamento de desintoxicação de agentes infiltrados num mundo muito parecido com o nosso, no momento em que sua reações eram avaliadas ao ler um discurso:

"Era um jovem de Voliednadna. uma criatura robusta verde-acinzentada, que não demonstrava nenhum sinal de nervosismo, mas começo imediatamente a erguer a mão para não perturbar os fios do monitor.

- Camaradas! Amigos. Sei que posso chamá-los de amigos por causa do que vamos realizar juntos.

Os gráficos e impressos que demonstravam suas reações emocionais estavam atrás deles, onde não eram vistos pelo examinando para não influenciar suas reações, numa grande tela alta. Eu e os examinadores na plataforma o observávamos e ao mesmo tempo podíamos notar a exata situação de seu mecanismo emocional.

Logo no começo ficou evidente que o jovem não ia agüentar por muito tempo, apesar de sua aprente solidez e resistência; à palavra 'amigos' todas as partes de seu organismo reagiram, e 'realizar juntos' o levou quase ao limite.

- ... não, você não está perguntando 'o que é isso?', pois você já sabe. Nós já sabemos.

Mas o jovem já havia fracassado, na palavra 'Nós' sua voz estremeceu repleta de sentimentos.; e a cigarra que indicava Fracasso soou.

Foi seguido por uma mulher forte e bonita, de Volyendesta, cheia de segurança  e sorrisos calmos para todos.

Sobreviveu à primeira passagem, com aquele perigoso 'amigos' deliberadamente inserido; passou por aquele 'nós' sem que as máquinas registrassem mais do que um levíssimo tremor de reação. Ma então a reação começou a crescer...

- Se não concordamos com os motivos do que acaba de acontecer, então devemos concordar com a cura. Estamos aqui reunidos por um motivo, esta situação não pode continuar. Estamos cercados por grosseiras desigualdades, por injustiça chocante, por pobreza terrível e riqueza cínica...

O tom de voz indicava que as lágrimas estavam na garganta e que não ia durar muito. Mas insistiu, embora a impaciência e irritação contra si mesma que apareciam no seu rosto indicassem que ela estava certa de ter fracassado.

- ... Por que somos afligidos desse modo pelos desmandos estúpidos de uma burocracia que geme sob o peso da própria incompetência? Por que numa rua vemos rostos que nunca souberam o que é abrir um envelope com o pagamento do trabalho honesto...

A voz falhou na palavra 'trabalho'; a cigarra tocou. Ela saiu com passos largos, bravamente, mas com lágrimas de desapontamento."

E assim segue o texto, com um discurso de Retórica padrão que segue num crescendo emocional, ideológico e proselitista, e as reações dos examinados.

É só prestar atenção em nosso cotidiano, para identificar situações puramente retóricas, onde as próprias pessoas as utilizam até inconscientemente como artifício para mascarar reais intenções ou racionalizar erros e incompetências. O pior é que dá para sentir, quase ver, o 'pavor' nos olhos desses 'escravos com mil senhores e nenhum'. Pavor de demonstrar não ter a menor idéia do que está falando, de se comprometer de forma irremediável, de perder o precioso pagamento mensal, da própria impotência.

Leia Doris Lessing. Faz proselitismo sim, para ensinar a livre pensar.

Dados de sua Biografia

A escritora nasceu na Pérsia, em 1919, hoje Irã, seu pai era um capitão britânico do exército, mutilado na Primeira Grande Guerra, foi trabalhar no Banco Imperial da Pérsia. Seu nome verdadeiro é Doris May Taylor, tendo emprestado o Lessing de seu primeiro marido. Passou sua infância e juventude na Rodésia do Sul, que na época era colônia britânica que depois da independência em 1980 tornou-se o atual Zimbábue. Integrou as fileiras do Partido Comunista britânico até o ano de 1956, quando deixou o partido por não concordar com a invasão soviética da Hungria que provocou uma repressão de grandes proporções contra o povo húngaro.

Entre suas principais obras está "O Carnê Dourado" (The Golden Notebook) de 1962 em que relata, em forma de diário íntimo, a vida de uma escritora de sucesso. Neste livro é possível constatar traços do movimento feminista que marcou boa parte de sua obra, outra característica de seus romances são os conflitos raciais, devido àsua estada em países da África. "Filhos da Violência", saga de cinco volumes escrita no período de 1952 a 1969, foi inspirada por sua juventude passada em diversos continentes. Outra obra de destaque da autora é a história de ficção científica, também em cinco volumes, "Canopus em Argos Arquivos", que fala de antagonismos entre princípios masculinos e femininos, sobre colonialismo, catástrofes ecológicas em um mundo primordial, escravidão, onde uma civilização evoluída que viaja pelo Universo renascendo em outros mundos tenta amenizar os efeitos nefasto de uma outra civilização predadora.

Sua obra reúne mais de 50 títulos, entre contos, poesias, romances, ensaios, autobiografias e ficção-científica. Outras obras importantes são "A Boa Terrorista" sobre um grupo revolucionário de extrema-esquerda e"Regresso para Casa" (1957), onde faz uma denúncia do apartheid na África do Sul. Há ainda, "The Grass is Singing", "Andando na Sombra", "O Quinto Filho", "Debaixo da Minha Pele" (1997). Outros, como "Memórias de um Sobrevivente" e "A Terra do Velho Chefe" são leituras de profundidade e qualidade, que nos deixam felizes quando começamos, plenos de descobertas ao fruir e tristes por terminar.

A escritora viveu em Londres onde seguiu produzindo obras literárias. Recebeu o prêmio Nobel de Literatura e recebeu como parte do prêmio, 1,08 milhão de euros, dinheiro muito bem vindo, pois durante a maior parte de sua vida enfrentou grandes dificuldades financeiras.

Veja no You Tube sua reação à notícia do prêmio Nobel http://www.youtube.com/watc

Ontem dia 16 de Novembro de 2013, Doris May Lessing partiu para Canopus. Tinha 94 anos.
Dizem que morreu tranquila, sem atropelos e sem apegos.
Desde o dia em que descobri seus livros, lá por 1977, houve uma perfeita identificação entre nós.
Ensinou-me que não havia problema nenhum comigo, que o mundo era essa hipocrisia ideológica mesmo e não havia nenhum problema em não entender as coisas, em ficar à margem do pensamento mesquinho manipulador da mídia, dos Governos e das diversas formas de entretenimento.
Entendi, Doris, valeu. 
E eu juro que durante todo o dia de ontem eu pensei em você, sem saber que morria.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Aritmética



Aritmética
 
Meu corpo é zer0,
zer0 zer0 zer0, zer0
qualquer coisa de mim.
Minha alma é nove
nove nove nove, nove
do resto de mim.

Pois não é pura e bela,
como  são só as crianças.
É velha como o tempo
e fez e viu todas as coisas.

Mesmo assim não espere
Que compreenda as aritméticas,
Regras e costumes
Deste lugar pesado e duro.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A Aparição do Cantor Triste


A Aparição do Cantor Triste

Contar como começou, espalhou-se e terminou o fenômeno causado pela aparição do homem conhecido como O Cantor Triste, é o trabalho mais fácil do mundo. Difícil é abordar a estória de um ângulo ainda não explorado à exaustão por outros jornalistas.

Ainda é memória fresca nos programas de TV e nas redes sociais, com cada dia mais acessos nos vídeos postados no YouTube.

O que se sabe é que numa noite qualquer de outono, em Maio, apareceu um homem de idade indefinida mas definitivamente nada jovem, magro, um metro e oitenta, louro e de olhos quase certamente azuis, vestindo roupas boas e bem usadas, botinas tipo workman, moleton com um grande capuz sempre cobrindo a cabeça e deixando o rosto na sombra. Carregava um violão bem velho, hoje identificado como um Del Vecchio elétrico e um banquinho redondo de madeira escura que rangia quando ele se ajeitava para tocar.

Às nove horas d’uma bela noite de sexta, instalou o banquinho no canto da Galeria Julio Moreira, depois da entrada do TUC, Teatro Universitário de Curitiba. É ainda um lugar escuro e pouco iluminado, pois o teatro raramente está aberto e as luzes mais fortes do lugar são de algumas lanchonetes e lojas alternativas do outro lado da galeria. Assim, o canto é escuro, sem pintura, sombrio como só o cimento cru de um lugar subterrâneo pode ser.

Esta galeria é apenas uma passagem sob a rua Stellfeld, ligando o Largo da Ordem à Praça Tiradentes, feito para servir as pessoas que tomam os ônibus parados de um lado e querem passar para o outro de uma rua larga e movimentada. Na prática, muito pouca gente usa a passagem, preferindo arriscar atravessando no meio de carros a descer a escada, percorrer os poucos cinquenta e poucos metros da galeria e subir a escada do outro lado. Se não fosse pela esfiha de um turco velho que tinha uma lanchonete ali em 95, eu mesmo não conheceria tanto o lugar.

O primeiro registro oficial de sua presença deve ter ocorrido naquele mesmo dia.

Contou o guarda municipal F. S. S.: descia a escada vindo da Praça, quando ouviu alguém cantando e identificou à sua esquerda um homem sentado num banquinho e tocando violão. Imediatamente adotou a postura indicada para interpelar o artista de rua munido do argumento de que não era permitida aquela atividade no local, devidamente secundado por seu companheiro de patrulha. Mesmo com tanta e marcial presença o indivíduo não cessou sua atividade quando, estava o diligente agente de segurança pública pronto a reestabelecer a ordem, sentiu que aquela música o cativava. Em silêncio, ouviu a canção até o fim. Diz o guarda: ele tinha um jeito especial de tocar e a voz era calma e firme. Terminada a música, começou a levar o braço para sacudir o indivíduo quando sentiu seu companheiro segurar seu ombro com firmeza. Olhou para o colega e ele tinha os olhos cheios de lágrimas, dizendo: deixe tocar mais um pouco. Ouviram outra música e mais uma, essa ele conhecia, mas nunca tinha ouvido cantada desse jeito. Quando o indivíduo acabou, levantou, pegou o banquinho e foi embora sem tirar os olhos do chão. Os guardas e algumas outra pessoas ficaram apenas olhando o homem ir embora e todo mundo demorou para se mexer e continuar cada um tratando de seu assunto.

Na outra sexta, mesma hora, segundo o dono da banca de revistas do local, o cantor apareceu de novo. Era uma noite anormalmente quente para a cidade e a estação. Tinha muita gente indo para os bares do Largo da Ordem para aproveitar uma dessas noites eletrizadas quando todo mundo resolve dar uma saída.

Três meninas, todas com seus quase vinte anos, dizem que estavam rindo e bobeando pela escada, brincando que a Galeria escura devia ter um tarado para cada uma, quando ouviram a primeira nota. Foi só a primeira e era muito especial, parecendo um gemido longo e doce, segundo elas. Era o começo de uma balada do Vampire Weekend que uma delas conhecia. Diz ela que a música era só um som lento antes de ouvir da boca do cantor, pois agora percebia que era uma música triste, de uma tristeza que segurava a gente e fazia chorar. Elas olharam para os lados, ainda com medo dessa Galeria escura, mas havia dois guardas municipais parados logo atrás delas e se sentiram seguras para ouvir o cantor até o final naquele dia.



Naquela noite, outra testemunha conta que atravessava a Moreira para tocar no V. B., quando teve que parar assim que ouviu o cantor. Não foi o único, pois já havia um monte de gente parada em torno do ponto mais preto do lugar. Notou as meninas bonitas, quatro guardas, trabalhadores e todo tipo de gente só ouvindo. O cara – inevitável chamar de “o cara” um roqueiro curtido - é músico há uns trinta anos, da formação original do Blindagem, escolado em todo tipo de som e com pouquíssima tolerância a amadores. Tem o olhar meio perdido de quem ficou sem o Ivo Rodrigues. Primeiro notou o dedilhado. Era uma coisa diferente, com uma pegada lenta e firme no pinho (sic), cada dedo da mão esquerda nunca parava realmente numa corda, acariciando cada uma e fazendo o som chorar um pouco mais. Aquele toque a mais era quase imperceptível mas estava lá. A mão direita dava à música uma levada cheia de meios toques, solando, acompanhando e floreando ao mesmo tempo. Deixo o cara dizer: “... e olha que era uma dessas músicas dos anos setenta, dessas coisas melosas que ainda tocam nas rádios light e easy da vida, Hotel Califórnia, nunca curti, mas era como se nunca tivesse ouvido antes. Os rifes estavam ali, melhorados de alguma forma e senti a voz dele vindo em ondas e nem era uma grande voz, mas vinha bem assim mesmo e me parou prá ouvir. A Hotel terminou, ele respirou fundo, sempre sem levantar a cabeça coberta pelo capuz e começou a tocar Skin And Bones, do Foo. Deus do céu, eu queria tocar assim”.

J. M. O. é porteiro na Ritz e fica no trabalho até às nove, indo direto atravessando a Tiradentes e passando pela Moreira para pegar o Mercês Guanabara que para na Stellfeld. Naquele dia parou para ouvir uma música que tocou no seu casamento. Fala que nunca tinha notado como a música era tão doída. Quando tocou na igreja, ele e a mulher parados na frente de todo mundo, parecia música de amor, para dançar agarradinho. As poucas palavras que entendia em inglês, love a woman, somebody e forever, falavam de romance para ele. Achava meio enjoada, mas tinham assistido o DVD do filme com aquele ator, o Johnny Depp, e caiu bem no casamento. Só percebeu que era muito triste naquela noite, era sobre um amor lindo que não tinha como dar certo. Ligou para a esposa e gastou todo seu crédito de celular para que ela ouvisse também. A Galeria estava tão quieta que dava para ouvir perfeitamente. Quando chegou em casa, ela ainda chorava.


 
Na terceira noite, V. A. voltou mais preparada e racionalizada pela semana de afastamento e reuniu coragem para levar uma boa câmera digital com tripé e gravar o cantor, dando ao arquivo de mídia postado no YouTube o título de O Cantor Triste.

Deixo ela mesma se justificar.

Gravei sim. Mais para provar para as pessoas que eu não estava louca. Na primeira vez, quando cheguei em casa e comecei a postar para os amigos a foto que tirei e falar do cantor, enfrentei muita zoação. Diziam que eu estava boba, o cara não podia ser tudo isso, eu era uma deprimida mesmo. Isso prá dizer pouco! A semana inteira só ouvi o pessoal achando que eu tinha virado tiete de cantor de rua. Então eu gravei. Desde a hora que ele chegou, até o fim. Não! Ele nem reagiu com a câmera. Só pôs o banquinho, sentou e tocou. Não repetiu nenhuma música, não descobriu o rosto, nem olhou prá ninguém. É bem como está no vídeo. A única coisa diferente foi que parou para olhar a caixa com dinheiro antes de ir embora. O mais engraçado é que a Galeria estava cheia de gente, a maioria assistiu toda a apresentação e quase todo mundo chorava sem vergonha no final, mas ele saiu na boa, sem que ninguém cumprimentasse, agradecesse ou sequer tentasse falar com ele. Só abriram caminho e ele se foi. Assim sem mais. ( Ela faz uma pausa, sorri e confessa.) Gravei tudo e quase esqueci a câmera. Já ia embora quando chutei o tripé e quase perdi tudo. Fiquei meio boba outra vez. Não! Eu não acho que ele seja triste e me arrependo de ter dado o nome de O Cantor Triste ao vídeo. Não é tristeza, é sensibilidade. Quando ele canta e toca, ele desbanaliza a tristeza, entende? Torna a tristeza uma manifestação de sensibilidade nesse mundo maluco que a gente vive. Afinal, o vídeo bombou no planeta, até a Yoko Ono deixou comentário, o Brian Adams compartilhou, Alice Cooper disse que chorou quando ouviu I Never Cry. Não é louco tudo isso?”

Sobre a caixa com dinheiro, é preciso lembrar fato conhecido de todos. Naquela terceira noite, alguém empurrou uma caixa de All Star Converse para a frente do cantor, logo nos primeiros acordes de Bridge Over Troubled Water. No final, enquanto ele punha o violão debaixo do braço e apanhava o banquinho, o pessoal depositou exatos R$322,00. Como sabemos? Pois ficaram ali mesmo, abandonados. Ele apenas parou por uns segundos diante daquela caixa cheia de dinheiro, olhando para o chão como se fosse um buraco e sem saber se devia pular por cima ou contornar. Resolveu contornar e apenas ir embora. Foi o guarda municipal F. S. S. quem finalmente pegou a caixa, contou o dinheiro, guardou de volta na caixa, escreveu o valor na tampa e amarrou. Quando me contou seu primeiro encontro com o cantor, dias depois, ainda carregava a caixa intacta para provar seu ponto de vista: o Cantor Triste não estava ali cantando para ganhar dinheiro, só cantava e nada mais, não havendo nenhum motivo para ser enquadrado como artista de rua. Era apenas um cidadão que resolveu cantar na rua e não havia lei nenhuma contra isso.





Na seguinte sexta-feira, a noite estava horrível. A semana começou seca e fria, logo esquentou, depois choveu dois dias seguidos e o resto ficou nublado, frio e ventando forte do Sul, chegando na cidade uma mistura de mistrais e minuanos inóspitos. Ainda assim, não se sabe se por efeito da bombada do vídeo na internet, pelo despertar do interesse da imprensa no fenômeno ou por legítima devoção da tietagem, a Galeria Moreira começou a encher desde as sete horas. Eu cheguei às seis e de agora em diante posso relatar o quanto vi e ouvi.

Um dos ouvintes estava lá esperando o tempo passar dentro do TUC, cercado de atrizes bonitas de doer mais o Chico Teha e nem aí com o tempo gelado, pois, faça frio ou faça sol, anda sempre de calças curtas, Paulão F., é um soberbo ator e diretor que vive 24 horas por dia em estado proto-maníaco, muito agitado e ágil apesar ou a propósito do corpanzil e foram dele as observações mais bizarras sobre o Cantor Triste. Lá vai algumas, no seu estilo rápido e telegráfico.

“Estive aqui na semana passada. Cheguei tarde e ouvi só umas três. Mas deu prá sentir. Tinha muita gente e não deu contato visual. Não é fácil explicar prá quem nunca ouviu pessoalmente. O vídeo não passa nem a metade da sensação de ouvir ao vivo. Quando acabou, fiquei pensando como soaria o Kurt Cobain se tivesse passado as últimas horas de vida antes de dar um tiro na própria cara tocando suas músicas para si mesmo. No dia seguinte, pensei seriamente se não seria o “O Homem que Caiu na Terra” ainda andando ‘pela aí’ sonhando em voltar prá casa, pois só ele mesmo seria capaz de dar a total dimensão da dor de sua saudade... não sabia que Starman podia ser cantada daquele jeito”.

Outro chegou e se refugiou da aglomeração dentro do TUC, pois conhece e se dá bem com todo mundo. Era a primeira vez de Carlos Calwo e estava cheio de expectativas. “Não gosto muito de baladas românticas pois tem muito trapaceiro no gênero. O sujeito pode ser falso como uma balada feita sob encomenda, tipo o produtor do Phil Collins recomendado que “falta uma pitada mais romântica nesse álbum, Phil” pensando, é claro, no gosto de suas balzaquianas. Depois manda um e.mail desfazendo uma relação de amor e todo mundo fica sabendo. Outros, podem ser verdadeiros canalhas, como o Axl mandando ver uma balada romântica que parece mais estar lamentando a falta daquela bitch preferida que sabia guardar a cocaína prá ele e era tão boazinha quando avisava do resto de pó branco na ponta de seu nariz. Ainda tem as baladas no varejo dessas megas bandas por aí, os caras bocudos gritando que estão apaixonados, sim senhor! pois dentro desse colete de couro tem um porco com coração. Fico na minha até conferir.”
Todos demos passagem para o pessoal do TUC carregando um praticável. Levaram o quadrado de madeira de cinquenta centímetros de altura por um e meio de comprimento para o canto onde o cantor costumava ficar. Logo atrás veio um técnico com uma fonte de luz para ser instalada do lado de fora. Seria interessante a reação do cantor a esse palco improvisado.

Outra testemunha presente, podendo ser livremente escancarada, o crítico musical, colecionador e editor Aramis Milarch, tem teorias interessantes sobre o Cantor Triste. “Parece incentivar a provocação quando toca músicas cansadas e ruminadas à exaustão em nossos ouvidos, nos filmes e rádios, cooptadas pela propaganda, banalizadas ao ridículo, quando faz diferente, melhor e ao mesmo tempo idêntico ao original. Escolhe sempre canções completas. Ou seja são músicas COM melodia. Não são apenas músicas com ritmo, arranjo e orquestra. Há sempre uma linha melódica simples e agradável em cada uma delas. Como dizem, das boas. Todos os compositores fazem cada um seu punhado de canções, ou músicas com belas melodias, alguns parecendo perder com o tempo essa inspiração e prosseguindo – ou persistindo – com músicas desprovidas de alma melódica. Veja o último álbum do David Bowie, ou o mais recente do Tom Waits, mesmo do Biffy Crillo. Parecem arremedos toscos, imitações baratas e apagadas de seus próprios dias mais iluminados”.

Aramis faz uma pausa, observa o esforço do pessoal do TUC afinando a luz sobre o praticável e complementa, sombrio: “espero que a FUCUCU não estrague mais essa”.

 


Enquanto isso, as pessoas chegavam. Quem já havia presenciado o Cantor, ouvia os ignorantes novatos com um sorriso condescendente.

Maria R. tem um programa matinal de entrevistas e música e chegou se esgueirando entre as pessoas já apertadas na Galeria estreita. Mulher de beleza exótica e olhos de uma inteligência evidente, quase intimidadores, também aguarda uma nova experiência. Veio por ouvir falar e ver o vídeo, reconhecendo estar armada contra fenômenos fugazes de gosto duvidoso. “A fronteira entre Eros e Thanatos é muito tênue. Ambos são processos de crescimento e mudança. Mas veja as pessoas lá fora. Todas calmas, só esperando, sem agitação, quase passivas. Não, maconheiro é pacivista. Eles estão pacíficos. Muito estranho... ninguém bebendo, nenhum fumando...”.

Verdade! Toda aquela gente estava bem comprimida, até ao longo de ambas as escadas de acesso, exceto pelo círculo mágico agora bem marcado pelo praticável. Mas não havia empurra-empurra, nervosismo. Alguns até conversavam em voz baixa compondo um burburinho uniforme de platéia erudita no Guairão. Enquanto isso, boa parte da classe artística e intelectual procurava refúgio no pequeno teatro. Uma jornalista da Globo local tomava, com seu câmera e sonoro pareciam discutir com o CEO da Fundação. Cheguei mais perto, ocupando um espaço na roda de conversa e ela me olhou sem me reconhecer, continuando a falar com o outro. Estava muito aflita, enfatizando palavras chaves com gritos e dando golpes com as mãos espalmadas numa mesa imaginária.

“Entrevistei muitas pessoas na sexta-feira passada, principalmente quem ficou perambulando meio sonâmbulo pelo Largo da Ordem. Tinha gente de todo tipo e idade TODAS com olhar meio perdido, como... como o olhar de Peter O’Toole em Laurence da Arábia, ENTENDE? Eu sempre fazia a mesma pergunta: de qual música você mais gostou? qual a que mais mexeu com você? E as pessoas citavam uma ou duas sem hesitar. E EU concordava, pois também tinha me emocionado com a mesma música. Pode ver nas gravações! Então fomos ver a gravação de toda a apresentação daquele dia. Gravamos do começo ao fim, TODAS as músicas. E a loucura da coisa é que as pessoas citavam músicas que ele NÃO CANTOU! Ele não cantou Only You, nem With or Without you do U2, nunca cantou nenhuma dos Beatles, nem do Tom Waits. E uma porção de outras. Mas as pessoas mencionavam e ainda diziam que a música ficou mais linda, que nunca pensou que podia ficar tão melhor, que entendeu coisas novas de uma música que ouvira muitas vezes antes. Mas ele não cantou a música. NÃO CANTOU, entende!”

Quando o silêncio começou a se espalhar a partir do alto da escada que vem da Tiradentes, soube que o cantor estava chegando. Apesar de parecer impossível, as pessoas se comprimiram um pouco mais para abrir uma célula vazia por onde ele se movia em direção ao seu lugar, abrindo em sua frente e fechando à sua passagem num só movimento fluído. Assim folgadamente passou por eles, instalou o banquinho no centro do praticável e sentou com o violão no joelho direito, como sempre. E assim sempre em silêncio, com o rosto coberto e a cabeça baixa, a luz dicróica discreta instalada pelo TUC não era suficiente para revelar sequer um traço por baixo do capuz, respirou fundo e no terceiro acorde reconheci 4+20, de Crosby, Stills e Nash. Isso sim é um presente!


Apesar do praticável e da luz dando uma pretensão de show à apresentação, estas duas novidades ameaçando uma situação frágil, ninguém estava preparado para tudo o que acabou acontecendo naquela noite.

Vi o vídeo muitas vezes, sentindo o violão perfeito e a voz interpretando corretamente cada canção. Senti alguma emoção a mais, também. Uma certa melancolia, uma saudade não sei de quê, uma alegria por estar vivo e ativo no meu pequeno mundo particular. Toda uma série de emoções de calma e certeza. Mas estar presente foi incomparável. Podia tentar transmitir toda a sensação, cansando o leitor com comparações e adjetivos ao longo de milhares de palavras. Só me resta pegar um atalho. Naquela hora me acreditei com alma, pois senti que uma alma tocava e cantava para a minha alma ouvir. Acreditem. Ou não. Ou vejam os vídeos e multipliquem a emoção por dez, pois telas, tubos e autofalantes não transmitem essa vibração com fidelidade.

Terminou 4+20, passou a mão esquerda ao longo do braço esguio do Del Vecchio bem usado e gasto, como se acariciando ou apaziguando e respirou fundo. Nestes segundos entre uma e outra canção, senti uma extraordinária sensação de estar no exato tempo-espaço daquele momento. Sensação de enorme poder, logo apaziguada pelos acordes de The Great Pretender, de Buck Ram, “Tão real o sentimento de acreditar... Too real is this feeling of make believe” nunca tocado com tanta verdade por aquelas mãos que deslizavam pelas cordas entre as posições, fluindo como cada frase desencadeando confissão e descoberta de mim mesmo.

Triste é ser apenas tridimensional. Triste é estar limitado por carne e matéria. Triste é cimento, aço e piche à nossa volta. Triste é precisar de palavras.

Ele não tinha terminado essa canção quando parou.

Havia muita gente na Galeria. Tantas quanto era possível. Ambas as escadas de acesso estavam tomadas e havia uma multidão ainda maior lá fora, querendo estar ali. Até o primeiro degrau ao nível da rua as pessoas podiam ouvir o Cantor. Além dali, as pessoas não eram atingidas pelo efeito hipnótico. Mas queriam ouvir. As pessoas que não escutavam percebiam o olhar embevecido daqueles que estavam dentro da galeria e precisavam dessa experiência. Então forçaram, empurraram e se comprimiram, até que o pequeno círculo vazio à volta do Cantor foi diminuindo. As pessoas languidamente distraídas foram empurradas e caíram sobre o praticável, desequilibrando e finalmente derrubando o Cantor.

Silenciada a canção, as pessoas da galeria ainda estavam saindo daquele estado de quase torpor e demoraram para perceber o perigo que corriam naquele espaço pequeno repleto de gente.

Gritos e movimento explodindo em todo canto, as portas do teatro não resistiram e foram abertas completamente, aliviando a pressão, as pessoas de fora se espalharam e deixaram que as pessoas na galeria saíssem para as ruas. Foi assim que ninguém morreu, não se sabe se alguém quebrou algum osso próprio ou de outrem, algumas pessoas se sentiram mal e foram se acalmar nos bares em volta e algumas portas de loja foram quebradas pela simples pressão de corpos. Se alguém morreu na confusão, ficou quieto para não depor contra.

O Cantor desapareceu na confusão, levando seu banquinho e seu violão.

O resto foi previsível, como previsto. Autoridades proibindo, politicalha fazendo lei para coisa alguma, pequenos transtornos tornados grandes acidentes, culpa deste ou daquele. Nada de novo na mediocridade social.

Uma semana se passou e um punhado de otários, eu incluso, foi esperar o cantor na Galeria. Disfarçando, pegamos uma latas de béra no Bar do Torto, circulamos o bebedouro e fomos sentar na mureta ao lado das escadas. Tinha mais gente passando do que o usual e todos disfarçadamente esperando encontrar o Cantor no mesmo lugar de sempre. Impossível mascarar a decepção de cada um ou o alívio de três viaturas de polícia na esquina de cima. Uma mulher com um microfone, um cinegrafista correndo atrás, procuram um jeito de dizer que a notícia de hoje é que não há notícia do Cantor Triste.

Outros perdidos sentados na mureta bem na nossa frente. O Orlando Azevedo, “Olhando Sem Medo”, com o olhar perdido no chão aos seus pés, precariamente segurando sua câmera com a ponta dos dedos, as mãos apoiadas nos joelhos, reflete a captura da alma dos coisas e seres e a profundidade de foco das emoções humanas. Está pegando o espírito da coisa toda.

Sentado na parede da lanchonete na nossa frente, um noiado de crack se incorporou naturalmente ao nosso pequeno grupo, a contragosto do Ulisses e do Sátiro. Disse que o conheciam por Micão, apelido adequado a um sujeito muito alto e magro, em permanente estado de síndrome de abstinência, eletrizado e com um vocabulário de quem já foi acima do normal. Uma dessas almas hipersensíveis nascidas para precisar desesperadamente sufocar, blindar, ocultar sua sensibilidade com qualquer droga ilícita ao seu alcance. Contou a vantagem de ter visto todas as apresentações do Cantor e, inesperadamente, descreveu de onde vinha sua mística.

“Ele foi o Cantor Triste, apenas isso. Não tem um nome, nem uma raça ou um passado. Não tem rótulos. Não é como o cara que matou meia família pilotando um aviãozinho estúpido e seguiu cantando; nem o outro que deixou o filho cair da sacada e compôs uma musiquinha lacrimogênea para capitalizar a tragédia; muito menos o velho roqueiro comedor com escândalos de paternidade no rastro de sua mega turnê. Ou o pedófilo assexuado enigmático, o fenômeno de voz flagrado fazendo sexo oral no banheiro público, a diva encontrada na banheira e outros mil. Nunca fará um dueto desesperado com outro cantor decadente que também está se afogando no esquecimento. Não há nada sobre o Cantor Triste. Canta na língua geral do império de plantão. Não tem sequer rosto. Não cobra nada. Não pede nada. Nunca falta e jamais se atrasa, pois sequer é esperado.”

Faz uma pausa para respirar, juntando as mãos na boca como se aspirasse um cachimbo imaginário. A mulher do microfone volta descendo a calçada, apontando o microfone na nossa direção. Antecipamos pretextos para evitar as câmeras, mas ela desiste quando repara no Micão, que continua cafungando as falanges e falando sem parar.

“Canta músicas de elevador, insossas trilhas sonoras de salas de espera e de todos os escritórios do mundo, daqui até a China. Não morrerá de aids, nem de overdose e não “está cercado por Deus e todo vil metal” (Belchior). Nunca será flagrado bêbado ao volante, nem vai se casar a cada seis meses e ninguém o conhece, pois “evita qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido” (Jorge Benjor), que somos todos nós, afinal. E, principalmente, nunca vai precisar cantar para sempre a mesma maldita música que fez sucesso lá no começo de carreira. É o cara sem pressão, sem compromisso e sem lei, que contradiz tudo que é mais sagrado no negócio de shows.”
“Como separar uma música bonita das merdas que os intérpretes vivem? ‘Meu escritório é na praia’ e meu inferno é no pó. Porra Chorão, eu te amava tanto! Alanis parou, cansada do pop e de ser produto, para fazer música cabeça. Dali a pouco voltou, pois não tinha nada melhor prá fazer. Me serve aí outro Mac Music. Tantos cantores ordinários não tem sequer uma alma que preste prá vender pro diabo.”

Olhou para nós como se nunca tivesse visto antes e resmungou “... é! Tô sabendo que tô divagando”. Levantou, agitado, gritando enquanto fugia pelas escadas da Galeria. “Quer saber? Vão se ferrar vocês e Bobby McGee!”.
É o que dá, dar confiança para noiado.

E não aconteceu nada diferente naquela noite.

Nenhum ser mágico surgiu fazendo coisas extraordinárias em todo esse vasto planeta com mais de sete bilhões de pessoas. Ninguém filmou, gravou ou meramente testemunhou um eventinho inexplicável sequer. Ficamos apenas nós, os ordinários, com uma pressão subindo no peito e os olhos ameaçando marejar.