segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sensibilidade Bruta

O Pintado 

Primeiro, achei bonito aquele animal magnífico repousando sobre o gelo picado no balcão da peixaria. Escamas cor de chumbo com raias douradas, corpo de gigante com potentes nadadeiras, impossível de não imaginar nadando velozmente pelo fundo do mar onde é um dos seres mais graciosos. Depois, cenas de bravos pescadores fisgando magníficos espécies, com detalhe na fisgada do anzol, como rasga a boca e a linha puxa com técnica de cansar até ficar ao alcance do arpão que fura e recolhe o bicho estendido no fundo do barco, debatendo-se. Finalmente mordi um pedaço suculento de peixe e senti lá no fundo do palato, numa área da língua despertada por todas as reflexões anteriores, o gosto amargo do fel.

O gosto da dor desesperada que só um animal arrancado com violência de seu estado natural de liberdade é capaz de sofrer.

Fácil comoção desperta um animal magnífico das águas, jazendo morto à espera de ser retalhado para degustação dos consumidores. Mas os pequenos peixes todos iguais também foram livres um dia. Até os aparentemente estúpidos camarões que estão na parte de baixo da cadeia alimentar dos mares viveram alegremente suas breves existências, cumprindo seu papel. Em seu meio natural são devorados lutando, predando e sendo predados num ciclo eterno regido por leis universais, servindo-se de vida e sendo servidos diretamente a outro ser vivo.

Os animais que vivem sobre a terra e as aves nos ares, os quais podemos observar e admirar diretamente, já obtiveram um pouco dessa compreensão. Alguns seres dos mares que surgem na superfície e andam pelas praias, como golfinhos, baleias e tartarugas, encontram alguma proteção e são consumidos apenas por inescrupulosos ou por hábitos excêntricos, cujas convicções e culturas jamais permitirão que o paladar se desenvolva e identifique o gosto da crueldade.

Quanto aos seres vivos que são criados e consumidos por constituírem fonte de proteína essencial, foram selecionados para esse fim e acompanham os seres humanos desde sempre. Apesar disso, um certo gosto diferente, um travo de estúpida melancolia num bovino e uma textura de aflição numa galinha, ainda permanecem depois da refeição, dando o trabalho de abstrair os fatos para continuar se alimentando sem culpa.

Pois nenhuma ação de lavar, temperar, assar, cozer ou fritar consegue extirpar o gosto abjeto que persevera num pedaço de carne: o gosto da sua morte.



Portanto: Nunca coma um animal arrancado do estado natural de liberdade.

A Mesa de Centro


Um móvel imponente, num estilo moderno muito datado, com entalhes precisos e equilibrados sulcando a madeira escura e rija, mogno, imbuia ou uma dessas árvores exóticas extraídas das selvas de Goiás ou do Amazonas. Nobreza e requinte, como afirmam os catálogos e prescrevem os arquitetos, ficaria perfeita no meio da minha sala, guarnecida de objetos de fino gosto e expressando perfeitamente meu nível social. Rija, mas sedosa ao toque, com sua camada de verniz quase indelével vedando sua carne escura quase vinho. 


Contudo, antes da mão tocar sua tez finamente acabada, sente a emanação quente e pegajosa recendendo da madeira. A ponta dos dedos ficam dormentes sob o choque de uma energia desagradável, sem identificar qualquer agente que a emitiu. Está ali, em torno, quase fragrância, quase vapor, nunca dissipando. Lembra um outro mundo apenas concebido, um mundo de erros e perdas que está na periferia do mundo limpo e decente que conheço. Tresanda o som do tronco estalando enquanto cai, os galhos partidos pelo próprio peso, o gigante vencido e estendido sobre o que resta da selva. Homens miseráveis, ignorantes e famintos, caminham sobre ela com serras e machados, arrastam o corpo despido pelas trilhas, para os rios, por caminhões.

Retirada por escravos, transportadas em contrabando, permitidas pela inépcia e pela corrupção, produzidas por inescrupulosos e negociadas em espaços requintados freqüentados por classes abastadas.

Já testemunhou? um ato violento como de um sujeito levando um soco. Você ouve o som do golpe e sente como se fosse uma onda de choque emocional que faz arrepiar. É a mesma sensação cercando o móvel. Está impregnada desse outro tipo de dor, memória de crime e violência não disfarçada por desenhos sedutores nem por todas as técnicas de acabamento do marceneiro.

Pode não ser tão gritante. Pode ser uma história impregnada na madeira, como daquela vez… 



Uma Cadeira Impertinente


Havia então uma velha cadeira, bonita a despeito do estilo indefinido, todos os planos e ângulos bem torneados. Pertencia ao pai de minha sogra, com quem convivi durante seus últimos anos, tendo expirado justamente quando estávamos sós os dois. Guardei no atelier, planejando restaurar um dia e o tempo passou até anos depois sem que começasse o trabalho. Um dia, resolvi queimar enxofre pela casa. É impressionante como mesmo a luz parece entrar mais dentro da casa, o ar fica fino e limpo depois que a fumaça se dissipa e até o som fica mais aberto, parecendo propagar mais livremente pelos ambientes. Acabado, deixei o resto fumegante num canto, sem premeditar, justo sob a velha cadeira.

Dia seguinte, olhei a cadeira e, num impulso, trouxe para o meio do atelier e comecei a lixar, raspar, preencher e consertar. Enquanto operava, pensava sobre o homem que havia passado anos sentado naquela mesma cadeira, de como era um homem maduro e saudável que se tornou um velho frágil em pouco tempo, vítima de uma operação desastrosa no joelho da qual nunca se recuperou. Suas piadas de italiano, seu humor e amor, sua força e seus sonhos, tudo absorvido por mim de alguma forma durante o quase transe de restaurar cuidadosamente a velha cadeira. Eram impressões suaves de quem passa por uma paisagem e sensações de longe, como quem ouve falar por cima, sem sentir sua dor física e a sua revolta pela humilhação que na verdade sempre sentia. Olhei para o resto de enxofre e compreendi que a memória de alguma forma impregnada na madeira havia sido lavada, ou levada, ou desintegrada, permanecendo só um resquício perfeitamente suportável. Todos esses anos, a cadeira carregada de lembranças da longa enfermidade repelia minha aproximação.

Dali em diante, sempre que restaurava algum móvel, primeiro limpava suas lembranças com uma mistura forte de querosene e enxofre. Quando terminado o restauro, a peça parecia realmente nova, você sentia que era nova. 


O Louco


Dias de ira, armas prontas e todos os problemas em volta. Trabalho duro, mulher ruim, dinheiro curto, amor nenhum. Corro pela rua cumprindo um prazo e atrás do prejuízo. Cabeça feito uma algazarra, sem nenhuma esperança de poder terminar seja o que for, mas indo em frente de qualquer forma. A rua é uma parede pela frente, uma gosma sob os pés e arma uma tempestade no céu. Pura adrenalina estressada. Todos são formas indistintas à minha volta. Quando um doido verbaliza exatamente o meu pensamento.

Paro e vejo um ser angustiado adquirir substância e cores. É magro e desgrenhado mas decentemente vestido, carregando um saco cheio quase arrastado no chão enquanto a outra mão gesticula sem direção. Por sua vez, olha para mim, à minha volta e através de mim ao mesmo tempo, provavelmente assustado por ou sem entender a razão de ter formulado aquela frase. Vejo só um louco de rua, desses estatisticamente previsíveis em qualquer multidão. Ele não tem a menor chance de me responder de onde tirou o que disse. Já nem olha mais na minha direção, rompido o impossível liame, perdida a freqüência. Ele o louco e eu o enlouquecido já não estamos mais no mesmo meio. Estranhos novamente. Mas ele gritou bem alto e claro a frase que mais me transtornava. Tão exata que esqueci a pressa, esfriei por dentro e por fora e encarei meu estado ridículo.

Houve outros que também ouviram meus pensamentos ao penetrar na aura de desespero que formo à minha volta em alguns momentos. Como aquela mulher, certa vez. Sentada na beira de vitrine da loja, seus olhos me perseguiram pela rua. Piscou como se percebesse uma anomalia, reconheceu alguma coisa e gritou exatamente a coisa que me ia na cabeça naquele instante. Era uma coisa dessas de momento desesperado, daqueles que só um homem sem amor pode sentir e ela disse. De novo alguém se destacou dentre as formas difusas da rua, como se adquirisse relevo numa paisagem bidimensional. De novo me perguntei se meu desespero era assim tão evidente. 

A Espada de Tai Chi


Onde dá para classificar as lembranças que temos de outras vivências? Na sessão de alucinações ou no departamento da sensibilidade, depende da coerência que somos capazes de demonstrar ao relatar. Até hoje me questiono se eram lembranças de fatos reais ou apenas um amálgama bem temperado dos milhares de livros que li, com os milhares de filmes que vi, com milhões de notícias, com bilhões de sonhos e pensamentos que tive, com alguns desejos conscientes e inconscientes que alimento, tudo grudado com forte apelo emocional e um punhado de teorias espiritualistas sem qualquer fundamento, batido num liquidificador até que impossível distinguir cada uma de suas partes.

Tudo começou pela necessidade de fazer exercícios que compensassem minha vida sedentária de escritório, evitando as conseqüências de horas a fio num teclado de computador. Sempre reacionário, inventei minha própria atividade, procurando associar força e destreza, ocupar ao máximo as mãos e os braços, com efeitos satisfatórios para o resto da musculatura.
Primeiro fiz uma espada de madeira pesada com punho para as duas mãos e lâmina do comprimento do meu braço, mais ou menos na tradição das espadas de treinamento dos velhos mestres chineses. Segundo, fiz propósito de aprender através de um vago processo intuitivo, onde os movimentos seriam ditados pelo momento. Depois de aquecer como em qualquer academia, postava-me para o exercício voltado para o sul, pois do sul vem o passado, a tradição e o aprendizado. Os movimentos começaram a surgir. Com ataques seguidos de defesas, volteios, mudança de mão, passos e gestos precisos e repetidos como se fosse realmente uma técnica. Muito oriental, no geral, mas com movimentos que às vezes eram mais próprios de Conan, O Bárbaro do que de Bruce Lee. Por algum tempo foi apenas atividade física e surtia os efeitos que buscava. Até que ficou sério.

Suado e exausto após uma série de movimentos, comecei a ter imagens vívidas acompanhadas de emoções intensas. Apesar de imagens, difíceis de descrever. Apesar de intensas, distantes. Apenas violentamente emocionais. Uma das mais intensas era de uma mulher e duas crianças que davam adeus, acenando da porta de uma casa de pedras brutas e teto de palha. A tristeza de deixar aquelas pessoas para trás era insuportável. O amor por elas era um fato definitivo. A saudade e o remorso crescia até virar choro se eu deixava rolar. A agonia sem fim era não saber quem eram ou quais seus nomes apesar da enorme saudade. Ou melhor, saber de alguma forma, de ter seus nomes na ponta da língua, sem a menor esperança de um dia poder lembrar. Lembro a dor da partida e nenhuma outra partida jamais será tão dolorosa.
Ao final de cada exercício, tinha a visão emocional de uma batalha, de uma decepção. Até que meu cotidiano começou a ser invadido por esses fenômenos. Um dia, entrei numa loja para comprar sapato. Vi um tipo mocassim e experimentei, apesar de nunca ter usado um desses. Quando entendi que esse tipo de sapato fica mesmo meio solto no pé, olhei para baixo e vi meus pés descalços, sujos e ensagüentados. Uma constatação: minhas sandálias vão cair no meio da marcha e não vou poder acompanhar a tropa, vou ficar para trás e morrer. Senti um medo tão real que comprei sapatos de amarrar com segurança.
Como tempero para uma vida comum, essas experiências eram suportáveis. Outro dia, uma pessoa no ônibus me lembrou alguém que deixei e a mesma emoção mistura de tristeza e revolta e saudade e remorso e desespero se condensou como nuvens de tempestade. Mesmo assim prossegui, entre assustado e curioso, esperando surgir alguma visão feliz, algum momento de supremo prazer que mereceu ficar marcado, até que vivenciei minha própria morte de uma forma particularmente violenta. Foi o dia do ponto final. A natureza é sábia em nos fazer esquecidos. Seja do que for. Da lembrança de vidas passadas ou da memória genética, pois não sei de uma e desconfio da outra. Parece que só levamos da vida a dor de tê-la deixado.

Passei a fazer exercícios sem ritualizar, só com força e destreza, procurando focar apenas os gestos. As sensações não voltaram, mas a coisa ficou chata e fui parando aos poucos até aposentar a espada.

O tom deste texto é meio empolado, não mais do que uma forma de me distanciar um pouco, pois tudo o que está descrito aqui é verdade e aconteceu mesmo comigo.

Deixei até de contar outros pequenos acontecimentos. Um objeto em casa que me incomoda e nem sei a razão. Ficar sentado por horas no banco de passageiro de um carro, sem entender nada, onde a ex-mulher deu carona para sua amante. Outro objeto em casa, que me atrai sempre e que encontro mesmo escondido, pois está carregado de energias estranhas. Tomar um caminho diferente e muitas vezes errado, evitando um acidente lá na frente. Sentir-se estranhamente atraído por uma pessoa estranha. Saber com certeza absoluta o que está acontecendo neste momento com alguém distante.

Sempre acontece comigo. 

Não é bom ou ruim, apenas interessante.