quinta-feira, 31 de março de 2011

A Vida na Periferia - Revisitada

Relatório do Agente

Confirmações Antropológicas Urbanas

A Vida na Periferia

Envio as impressões superficiais sobre os hábitos da população residente nos limites de média aglomeração urbana padrão. Sinto o enfraquecimento das defesas contra a Retórica, causando perigosa aproximação pessoal com os objetos de estudo e distorção de minhas observações. Assim mesmo formulo o relatório, que pode ser futuramente utilizado para medir o grau e a intensidade dos danos resultantes do convívio prolongado com esta sociedade.

Objeto: População multiracial, economicamente homogênea, culturalmente indefinida.

Local: Habitações limítrofes de cidade média.

Impressão Inicial

As precárias condições urbanas são evidentes mesmo se observadas de grande altitude.

Não houve planejamento na ocupação, resultando em habitações construídas ao acaso. As margens dos rios foram ocupadas irregularmente por populações ainda mais carentes do que os moradores regulares, resultando que esses poucos milhares poluem a água necessária a milhões. Em outras regiões, a encosta das montanhas e elevações foram ocupadas sem controle. Em ambas as situações é evidente a precariedade das habitações. Não existe absolutamente nenhum sistema de captação e tratamento para os dejetos e rejeitos líquidos, os quais são despejados em cisternas ou escoam para os rios.

Os recursos alimentares ficam sujeitos à distribuição por estabelecimentos escuros, úmidos e dedicados à comercialização de produtos populares de procedência duvidosa, muitas vezes próximos ou além do prazo de validade, expostos sem refrigeração e em ambiente insalubre. Nas periferias, estabelecimentos comerciais fornecem à população carente produtos de baixa qualidade e alto custo, uma vez que o fazem para pagamento posterior a pessoas que normalmente não podem obter crédito formal. Nessa situação, a população pobre honra os compromissos sob pena de não poder continuar a se alimentar.

Serviços pessoais são prestados por pessoas sem formação específica, como cabeleireiros, dentistas e conserto de roupas, a baixo preço e em condições indigentes, com resultados insatisfatórios.

População

O perfil genético da população é resultante, em sua grande maioria, de relações inter-raciais envolvendo negros, índios e brancos. São indivíduos com tons de pele que variam de moreno claro a negro, com grande predominância de pardos.

Hábitos

Observar a população em seu cotidiano desperta pungentes sentimentos no observador. Por exemplo, as mulheres. A maioria não exerce qualquer função remunerada por tempo definido e remuneração perene. Quando ocorre trabalho, é ocasional e incerto, restrito a funções humildes nas residências da cidade ou em estabelecimentos formais. Assim, aquelas de mais idade permanecem em suas casas, cuidado de sua prole e das habitações. O cuidado com os filhos pequenos é esmerado ao extremo. Sua principal atividade durante o dia é permanecer em frente das casas, olhando os filhos e mantendo longas conversas entre elas. As mulheres jovens, igualmente desempregadas, costumam entregar os filhos às creches oferecidas pelo Estado, durante todo o dia.

Quanto aos homens, é grande o número de jovens e adultos sem trabalho definido e sem remuneração perene. A maioria deles exerce função onde não é exigida mão de obra especializada, como na construção, consertos, reparos e jardinagem, sempre por pouco tempo, com baixa remuneração e muitas vezes sem vínculo formal. Quando cessa a remuneração, voltam a depender exclusivamente da ajuda obtida dos governantes, que lhes garante o suficiente para a sobrevivência. Em seus muitos momentos de lazer, dedicam-se a organizar reuniões de amigos e parentes em frente às suas casas, para rituais específicos de consumo de bebidas alcoólicas alimentos de origem animal processados em fogueiras, confraternizações rudes e ruidosas e audição de músicas em elevado volume.

Muitos dos hábitos, como o de utilizar a rua para socialização e a audição e músicas com forte percussão, são originários de suas antigas tradições tribais, quando se reuniam no pátio das ocas para ouvir tambores. O hábito é o mesmo, independente da idade dos grupos reunidos, com mudança sutil apenas no gênero musical que mais agrada a cada idade. Os mais velhos ouvem músicas regionais corrompidas através das gerações, originárias de região no extremo sul desse continente, provavelmente lembrança de missões indígenas orientadas por religiosos. Em aglomerados urbanos do centro do continente, essa influência vem de culturas do extremo norte. Os sons dominantes são de musicalidade simples, com batidas fortes e repetidas, causando efeito hipnótico e eufórico.

Outros hábitos corroboram a teoria de suas origens, como a de proceder a queima de vegetação e detritos sólidos, atividade incompreensível quando dispõem de eficiente sistema de coleta de lixo.

Elemento curioso nesse ambiente: seus veículos motorizados.

Mesmo em habitações humildes e precárias, é onipresente o automóvel (veículo de transporte pessoal com quatro rodas, movido a combustão de material fóssil) e cada vez mais comum a motocicleta (veículo de duas rodas com o mesmo princípio e função).

São geralmente antigos e obsoletos, com muitos anos de uso e em condições precárias, rejeitados pelas classes dominantes das cidades e finalmente à disposição dos indivíduos da periferia graças ao baixo preço e condições de aquisição a longo prazo. Apresentam deterioração no aspecto, desgaste de motor e de outros componentes, sendo muito dispendiosa sua manutenção, motivo pelo qual circulam ruidosamente e com dificuldade. Esses veículos são utilizados para muitas outras finalidades, além do simples transporte pessoal ou como fonte de renda eventual.

São equipados com potentes reprodutores de música, utilizados em seus rituais de socialização e mesmo quando solitários, para atrair atenção quando se locomovem pelas ruas. São usados para uma espécie de esporte muito comum, que envolve expor o motor para os amigos e outros entendidos sem conhecimento formal, consistindo em trocar palpites sobre o estado mecânico, fazer ajustes e tentativas várias para resolver dificuldades crônicas irreversíveis. Tendo dispendido o total dos recursos econômicos para aquisição, não tem condições de arcar com a manutenção e substituição dos componentes mecânicos. Jovens que ainda gravitam em torno da habitação paterna, dispõem de recursos para adquirir esses equipamentos, resultando em mais de um desses veículos para cada célula familiar.

Uma das superstições comuns nessas comunidades é a noção que o equipamento mecânico deve ganhar pressão através da elevação da aceleração, quando permanece muitas horas em repouso, essa prática prejudica ainda mais o desgastado equipamento pelo acúmulo de fuligem nos pistões e promove ainda maior degradação do ambiente com suas emissões de gases nocivos e ondas sonoras.

É preciso observar que esse culto ao veículo de transporte pessoal é resíduo da grande importância econômica que teve nas últimas cinco décadas. Sua produção e comercialização era a principal atividade industrial do planeta, demandando vastos recursos naturais não renováveis, sendo a posse de veículo demonstração de status social em qualquer classe ou região. Atualmente, divide sua importância com a indústria de entretenimento, informática e alimentação, nessa ordem.

Estágio na evolução dinâmica

Aqueles habitantes mais antigos, que ocuparam estas vastas áreas quando seu valor era insignificante, encontram-se em conflito subliminar com novos habitantes, estes oriundos das regiões mais internas do aglomerado urbano. Excessivamente urbanizado e ocupado, com carência de moradia para as novas famílias, as regiões com infra-estrutura e saneamento tornaram-se inacessíveis para os habitantes da cidade, que procuram as regiões periféricas por sua disponibilidade e menor custo. Por possuírem maiores recursos econômicos e melhor nível educacional, ocupam casas recém construídas, de material durável e em pontos privilegiados, trazendo consigo os hábitos adquiridos quando moradores das regiões centrais. Por exemplo, dirigem-se com seus próprios veículos, em geral mais novos e atualizados, para adquirir alimentos em grandes estabelecimentos localizados nas regiões ditas "nobres" do aglomerado urbano, que dispõem de grandes áreas de estacionamento. Os antigos moradores adquirem seus alimentos caminhando até estabelecimentos próximos, que não possuem área de estacionamento, sendo o alimento levado posteriormente à sua habitação por veículo de carga desse estabelecimento. Enquanto os primeiros tem larga possibilidade de negociação e escolha, estes ficam sujeitos à baixa qualidade e elevado preço.

Além de trazer diferentes hábitos, os novos habitantes não costumam confraternizar com os antigos, a não ser para a contratação de mão de obra por serviços ocasionais. Essa atitude é estranha aos moradores antigos, que inicialmente eram simpáticos aos recém chegados, acolhendo-os com saudações e sendo tratados com estranheza e indiferença.

Consumo

Os habitantes das regiões periféricas têm acesso aos bens de consumo que são comuns aos habitantes de áreas mais valorizadas e próximas ao centro do aglomerado humano que gravita. Contudo, a qualidade desses produtos é muito inferior, muitas vezes adquirindo artefatos apenas depois de usados ou quando se tornam obsoletos. Utilizam simples aparelhos de comunicação pessoal, com limitada capacidade de interação por seu elevado custo. Não contam com praças e locais públicos para confraternização, apenas com locais controlados por facções de cunho religioso.

Conclusão

Abandonados por seus governantes nas questões de segurança e saúde pública, são sustentados pelos mesmos governantes em suas necessidades mais básicas e imediatas. Um cidadão comum pode passar toda a vida sustentado pelos diversos benefícios concedidos. Desde o nascer, nos hospitais públicos e na ajuda para seu aleitamento e recursos médicos. Nas escolas básicas, com acesso à educação e alimentação enquanto é criança. Nas diversas formas de assistência, até com ganho de valor mensal em moeda. Na velhice, com ajuda financeira até o fim de sua vida, sempre contando com dezenas de instituições e programas sociais que os mantém nessa vida sem perspectiva.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Quero Ser um Estereótipo!



A origem pode ser muito mais antiga, desde as festas de Baco na Roma antiga, ou muito antes, quem sabe. O fato é que a “Commedia dell’arte” soube consolidar com bom gosto e sucesso os mais célebres estereótipos de nossa sociedade.

Uma companhia era formada por até doze atores, cada um apresentando personagem tipificado no qual se especializava. As características físicas e psicológicas desse personagem eram exploradas até o limite em ilimitadas situações.

Cada personagem correspondia a um padrão e se vestia de acordo. Havia o Amoroso, o Velho, o Ingênuo, o Soldado, o Vigarista, o Fanfarrão, o Pedante, o Criado Astuto e assim por diante. Alguns personagens se imortalizaram, como o Arlequim e a Colombina, Polichinelo, Scaramouche, Capitão Matamoros e Pantaleone.

A razão para o sucesso desses espetáculos, desde os anos 1540 na Itália, é atribuída ao grande número de dialetos falados naquelas regiões, sendo os personagens logo reconhecidos por qualquer público no momento em que pisavam no palco, pois suas ações e reações eram antecipadas pela audiência, facilitando a comunicação.

Natural nas artes dramáticas, como respirar para os pulmões, o uso de personagens estereotipados está na maioria das situações dramáticas em todas as suas formas, seja cinema, teatro, televisão, música ou literatura. Como o seriado mexicano “Chaves”, o seriado Dallas, a atual e a anterior novela das oito, das seis e das sete, em Rambo, Batman, Terminator, Crepúsculo, Harry Potter, em toda parte os mesmos personagens estão lá, é só retirar a camada de verniz aplicada para contemporanizar o produto final.

Um exemplo de agora mesmo, percebido por Luiz Fernando Veríssimo, identifica: “Se entendi corretamente as apresentações, são 15 os “animais” do “zoológico”: o judeu tarado, o gay afeminado, a dentista gostosa, o negro com suingue, a nerd tímida, a gostosa com bundão, a “não sou piranha mas não sou santa”, o modelo Mr. Maringá, a lésbica convicta, a DJ intelectual, o carioca marrento, o maquiador drag-queen e a PM que gosta de apanhar...” numa crônica onde perdeu tempo falando do Big Brother Brasil.

Mas, afinal, cada um de nós também está em permanente processo para se tornar um estereótipo qualquer.

Quando você se forma numa boa universidade, depois se doutora, procura um emprego estável, busca se adaptar a um padrão exigido pelo mercado de trabalho, está em busca de seu próprio estereótipo. Em seguida procura os clubes, os bares, a parceira, a casa e o automóvel e tem os filhos que lhe correspondem e, por fim, acaba com uma família estereotipada que tem o fim esperado quando o divórcio dá o acabamento final ao seu tipo.

Nos detalhes particulares, cada um se molda a um estereótipo. Se é um militar, adota atitudes conservadoras e rígidas e se cerca de objetos e pessoas que combinam com seu estilo. Se é um professor, adota atitudes abertas e despojadas, assim como o vestuário e tudo em sua volta, cristalizando esses comportamentos com o avanço da idade. Se é seja lá o que for, procurará sempre consolidar seu personagem para ter um rótulo claro e assim ser facilmente aceito pela sua comunidade.

Principalmente no mundo em que hoje vivemos, tornar-se um estereótipo claro é essencial para a sobrevivência social, profissional ou sentimental.

Tendo cada um sua vida, composta de seu trabalho, família e relacionamentos, também se comunica com centenas de outras pessoas que pouco o conhecem, seja pelas redes sociais, seja pelas relações não propriamente pessoais no trabalho e em qualquer outra facilitada pela tecnologia. Assim, precisa ser imediatamente reconhecido como persona detentora de características específicas que interessem a outra persona e a mantenha próxima.
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Porisso nos enquadramos desde a infância, adotando vestuário e atitudes de uma tribo, depois quando jovens nos preparando para ser amáveis por alguém e quando adultos adotamos os padrões que facilitem nossa sobrevivência no meio social. Ou somos impelidos a nos enquadrar em uma dada faixa social, adquirindo por imposição suas características específicas.

De qualquer forma, por escolha ou por adaptação natural, procuramos nosso próprio estereótipo, semelhante e comum a milhões de outros seres humanos. 

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É fácil identificar em nós mesmos o estereótipo que nos caracteriza. A melhor técnica é a de comparação com o outro que nos cause estranheza. É preciso eliminar o preconceito e adotar alteridade como estado mental, procurando se colocar no lugar desse outro até que o compreenda como um estereótipo qualquer.
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Nesse momento, poderá, talvez, reconhecer os milhares de indivíduos iguais a ele que vagam pela face da Terra e os outros tantos que são tão semelhantes nós mesmos

quarta-feira, 2 de março de 2011

Vítima de Preconceito

A vida inteira fui vítima de preconceitos.


Desde quando me lembro, alguém ou um grupo sempre me discriminou por este ou aquele pretexto. Deixo de lado o período da infância, quando as crianças são cruéis por natureza, quando vivia mais com o nariz enfiado num livro do que brincando e passo logo aos muitos episódios de constrangimento.


É bom esclarecer que sou branco, de olhos azuis e cabelos castanhos, hétero, com 1,78 m de altura e 62 quilos, com biotipo caucasiano padrão e leves traços eslavos, como o queixo largo e o nariz ligeiramente maior do que a média. Só ligeiramente. Aos 53 anos, ainda com muito cabelo e uma incipiente tonsura no alto da cabeça. Assim, nem gordo, nem baixo, nem negro, nem careca e, pensando bem, nem mulher, todas essas vítimas estereotipadas de todo tipo de preconceito.


Chegando em curitiba, quando adolescente, um imigrante caipira.


Respeitei demais uma namoradinha, ela me chamou de viado.


Louro e com esse sobrenome, polaco é um negro virado do avesso.


Dono de escritório contábil aos vinte anos, um piá de bosta.


Magro, um pau de virar tripas, dois palitos enfiados num sabugo.


Motociclista, um elemento suspeito, violento, irresponsável e avesso à autoridade, Resumindo, um maconheiro vagabundo.


Estudante de faculdade paga, incapaz de passar na Federal.


Psicólogo, um ouvido de penico, um médico frustrado fazendo curso mais fácil e barato.


Contador, um sujeito aborrecido, burocrático, procurado sem cerimônia para fraudar imposto, arrumar um tempo de serviço fajuto para aposentadoria ou sacanear um empregado.


Agente da SBAT, direitos autorais no teatro, um corrupto ou corruptível a quem se oferecia propina a troco de vantagens.


Agora curitibano, quando viajava as pessoas estranhavam ao descobrir que eu não era nem antipático e nem frio.


Com esse sobrenome, sempre esclarecendo que não era judeu.


Passei em primeiro lugar em concurso da Fundação Cultural e fui trabalhar em museu, era chamado de bailarino pelos outros funcionários municipais e de contador metido a artista pelos colegas de Fundação.


Andava com pessoal de teatro e de novo me chamavam de viado.


Amigo do Jean, que seguia o Inri Cristo, me chamavam de maluco.


Restaurador e encadernador, um artesão ignorante.


Morando em Colombo, um vileiro de periferia.


Carro com placa de Colombo, qualquer bobeira na rua e me xingam geograficamente.


Será que o discriminado às vezes sente vontade de ser outra pessoa? Sendo outro, enfrentaria outros preconceitos. Se fosse garoto rico seria chamado de filhinho-de-papai, se tivesse porte atlético seria apontado como pitbul descerebrado.


Não tem saída prá ninguém.


Só tenho que dar graças por ter tido amigos e às vezes ter sido amado, a despeito de tanta discriminação e preconceito.