David Foster Wallace

Meu depoimento,

texto inédito

e discurso de formatura.

Num pequeno artigo do "Rascunho", li pela primeira vez o nome do DFW. Era elogioso e superficial, só lamentando que livros anteriores ao "Breves Encontros com Homens Hediondos" não tivessem tradução. Terminava comparando que esse livro menor, se comparado a outros desse autor, parece com você chegar no final da festa, quando já comeram e beberam os melhores salgadinhos e bebidas e a essa hora só tem umas bolachinhas com guaraná. Fui atrás de "Breves Encontros..." e simpatizei. No sentido da palavra usada pelos franceses ao se referir a quem confraternizava com os invasores alemães durante a Segunda Guerra.

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A facilidade com que mergulha em almas alheias torna o texto convincente e pungente. Não é processo fácil, pois você não age como homem, ou você é ou não é. Você não sente como mulher, você é. E assim por diante. Assim sim simpatizei. Foi irresistível. Apesar de toda uma marketagem que apresentava DFW como um motoqueiro cabeludo, um professor cabeludão, fortão, todo contra tudo e muito na dele. Pura superfície, graças a deus.

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"Só a morte vem nos mostrar que amávamos muito mais profundamente do que supúnhamos"(Baudelaire). Neste caso, sua morte estúpida mostrou completamente o homem sensível, com uma enorme capacidade de empatia pura, que nele era um poder de ir fundo, procurar, entender, sentir junto e ainda realizar a proeza de por em texto claro a jornada.

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Lamento, I am sorry, ter pensado que DFW era babaca feito e Sallinger ou pretensioso como Pynchon. Não sei o que ele fez . O motivo de ter se enforcado, Mas, se eu fosse como ele, com  esse poder ou maldição, talvez escolhesse o mistério além da vida aos males tão sabidos. Não aceitaria continuar produto pela vida, com milhões cobrando o próximo livro aonde leriam mais do mesmo. Milhares que ouvem sua palestra e aplaudem extasiados e depois vão ver um filme do Batman, um novo Indiana Jones, um novo Exterminador, novas trilogias de mais do mesmo e outros produtos da cultura pop que consomem avidamente e aplaudem igualmente extasiados. 

Você virou um empregado de leitor, um prisioneiro daqueles que veio libertar.

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Eu diria que já disse o que tinha para dizer e não fez diferença. Não teve efeito nenhum. Diria que vocês entenderam e esqueceram em seguida. Diria que queria trazer lucidez e só obtive escravos cegos. Ofereci campos livres e vocês o cercaram com suas grades coloridas. Diria que foi inútil, que não devia ter iniciado esse caminho onde me tornei só mais um produto na prateleira, oferecendo prazer passageiro, ideais eternos só por hoje, amor para sempre até o orgasmo, piadas datadas. Eu diria basta!

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Mas ele não é eu. Meu pai não diria que eu sofria de depressão a vida inteira. Minha mulher saberia o motivo da corda no pescoço. Se eu fosse ele, todos saberiam. Nem que fosse só para vender uma emoção forte no noticiário. Que seria substituída por outra amanhã e depois de amanhã outra ainda. Pois eu não sou sensível até a exasperação, até o insustentável, como ele foi.

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David Foster Wallace (in: Oblivion, 2004)

tradução experimental Caetano Waldrigues Galindo

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Aí bem quando eu estava sendo solto em 1996 a Mamãe conseguiu um acordo em uma ação pequena contra o fabricante de um produto e usou o dinheiro imediatamente para fazer uma cirurgia cosmética nos pés de galinha em volta dos olhos. No entanto o cirurgião plástico fez bobagem e acabou causando alguma coisa na musculatura do rosto dela que fazia que ela parecesse alucinadamente assustada o tempo todo. Eu tenho certeza que você conhece a aparência que o rosto de um indivíduo pode assumir na fração de segundo que antecede o início do grito. Isso agora era a Mamãe. No fim de contas, basta um escorregão da lâmina para cá ou para lá nessa operação e aí você fica com essa cara de alguém na cena do chuveiro do Hitchcock. Aí então ela pegou e fez outra cirurgia cosmética para tentar corrigir aquilo. Mas o segundo cirurgião também fez bobagem e a aparência de susto ficou pior ainda. Principalmente em volta da boca dessa vez. Ela pediu a minha reação honesta e eu senti que a nossa relação exigia no mínimo isso. Os pés de galinha eram de fato coisa do passado agora que a cara dela era uma máscara crônica de pânico insano. Agora ela parecia mais a Elsa Lanchester quando a Elsa Lanchester contempla pela primeira vez o seu futuro companheiro no clássico do studio sytem de 1935, A noiva de Frankenstein. Agora depois da segunda cirurgia estropiada nem óculos escuros ajudavam muito já que a questão da boca escancarada e da distensão mandibular e dos tendões projetados e assim por diante continuava. Então agora ela estava envolvida em mais um processo e quando ela pegava o ônibus com regularidade para ir até o escritório do advogado que ela tinha escolhido eu é que era o acompanhante dela. A gente ia na frente do ônibus em uma das áreas de assentos mais longas que se alinham lateralmente ao invés de frontalmente. A gente aprendeu pelo método experimental a não sentar mais para trás nas fileiras de assentos mais normais que ficam de frente uns para os outros por causa de como certos passageiros visivelmente reagiam quando subiam e realizavam a ação aparentemente reflexa quando começavam a se mover pelo corredor até um assento de brevemente checar os rostos que os encaravam da estreita fileira de assentos que se estendia até o fundo do ônibus e repentinamente viam o rosto distendido e mudamente gritante da Mamãe parecendo olhar para eles com um pavor insensato. E houve uma catadupa desses casos e interações antes de eu me aplicar ao problema e desenvolver um hábitat mais operacional em ângulos retos. Nada nas fontes explica suficientemente o porquê de as pessoas realizarem a checagem de rostos assim que embarcam embora anedoticamente pareça ser um reflexo defensivo em toda a espécie. E eu também não sou um espécime bom para se ter no assento ao lado se ela queria passar despercebida em função de como a minha cabeça fisicamente se eleva por sobre todas as outras em um grupo. Fisicamente eu sou um espécime grande e tenho coloração distinta, olhando para mim você nunca saberia que eu tenho tamanha inclinação para os estudos. Há também os óculos envergados e as luvas especialmente projetadas para o trabalho de campo, não é nada impossível encontrar espécimes nos ônibus mesmo que as pesquisas até o momento não tenham rendido frutos. Não é como se falando às claras se pudesse dizer que eu gostasse de ir com ela enquanto ela exercia todos os seus esforços tentando não permitir que a vergonha da expressão crônica a deixasse com uma aparência ainda mais assustadora. Ou que eu realmente pudesse ansiar por me ver sentado em uma coisa que se pretende uma sala de espera lendo boletins do Rottary duas vezes por semana. Não é como se eu não tivesse outras coisas e estudos com que ocupar o meu tempo. Mas o que é que se vai fazer, as condições da minha liberdade condicional incluem a Mamãe ter declarado sob juramento que assumiria responsabilidade como minha guardiã. E no entanto qualquer um que observasse a realidade da vida conjunta desde a segunda cirurgia concordaria que a realidade era o contrário porque em função do desconsolo e do medo da reações dos outros a ele ela é praticamente incapaz de sair de casa e é capaz de atender às convocações intimantes do advogado para ir ao seu escritório só com a minha presença e proteção durante todo o longo caminho. Além disso eu nunca gostei de insolação direta e me queimo com grande facilidade. Desta vez o advogado sente o cheiro de um lucro monstro se e quando conseguir colocar a Mamãe em um tribunal e deixar um júri ver com os próprios olhos a conseqüência da negligência do cirurgião plástico. Eu também carrego uma valise o tempo todo desde o meu próprio caso. Hoje poderiam chamar a valise de acessório semático para advertir possíveis predadores. Desde a negligência original eu me imunizei primariamente contra a crônica expressão de horror da Mamãe mas mesmo assim posso me ver muito incomodado pela reação de certas pessoas a nós visualmente, algumas pessoas levam um tempo para se acostumar. O volante circular de um ônibus é não apenas maior mas está colocado em um ângulo de incidência mais horizontal que o de qualquer táxi, carro particular ou viatura de polícia que eu jamais tenha visto e o motorista gira o volante com um movimento largo pancorpóreo que se assemelha ao de alguém que varre com o braço todo o material de sobre uma mesa ou uma superfície em uma repentina comoção violenta. E os assentos perpendiculares especiais no segmento anterior do ônibus oferecem um bom ponto de observação para vigiar a luta do motorista com o ônibus. E eu também não tinha nada contra o menino de jeito nenhum. E também não há nada em qualquer determinação estadual, regional ou local que restrinja as variedades que você pode estudar ou que sequer estipule que cultivar mais do que uma certa quantidade delas constitua um risco imprudente ou um perigo para a comunidade em geral. Se a consulta é de manhã aí o motorista às vezes fica com um jornal dobrado em um canto perto da caixa automática de moedas ou bilhetes que ele tenta espiar enquanto espera nos sinais mas não é que ele vá conseguir ler muito desse jeito. Ele tinha só nove anos o que foi repetidamente enfatizado como se a idade dele de alguma maneira reforçasse a acusação de negligência por minha parte. Uma espécie asiática comum tem não apenas os símbolos semáticos ventrais mas uma linha vermelha reta nas costas, que leva a seu nome nativo, Linha vermelha em costa. Testes padronizados confirmaram que eu tenho tanto uma inclinação estudiosa quanto uma extraordinária memorização para o estudo o que ela nem tenta negar. Eu desenvolvi a teoria de que o motorista espia o seu jornal e relutantemente torna a dobrá-lo e o recoloca no seu canto no sinal verde para assinalar a paralisada repulsa que sente pelo seu ganha-pão e um psicólogo indicado por um juiz poderia diagnosticar o jornal como um pedido de socorro. Nosso hábitat usual agora é o assento que fica do mesmo lado da porta do ônibus minimizando qualquer probabilidade de que alguém que embarque tenha uma visão frontal e repentina da expressão dela. Sendo essa também uma lição aprendida à moda antiga. O único interlúdio mais leve foi que quando trouxeram o espelho e as primeira bandagens cirúrgicas saíram aí não era possível de início afirmar se a expressão do rosto era uma reação ao que ela estava vendo no espelho ou era ela mesma o que ela estava vendo e era esse o estímulo que provocava os ruídos. A própria Mamãe, que é uma fêmea de coração decente, ainda que vaidosa, amarga e tímida, mas que não é um colosso nas estradas do intelecto humano, para dizer francamente, não podia afirmar de início se a expressão de insano terror era a resposta ou o estímulo e se era uma resposta então uma resposta a que coisa no espelho se a própria resposta era a expressão. Causando uma desorientação sem fim até que a pusessem sob sedação. O cirurgião estava apoiado na parede com a testa contra a parede uma reação comportamental que sugeria, Sim houve efetivamente um problema com os resultados da cirurgia. O ônibus é porque a gente não tem carro, uma situação que esse novo advogado agora diz que pode resolver em um estalo. A coisa toda estava cuidadosamente armazenada e protegida e até a acusação admitiu que se ele não estivesse fuçando no telhado da garagem dos outros não havia como ele ter tido qualquer contato com elas. O que gerou os termos da condicional. No começo também era interessante no ônibus ver como os passageiros diante de qualquer vislumbre da expressão do rosto dela por reflexo se viravam para olhar para qualquer das janelas do ônibus à qual achassem que a Mamãe parecia estar reagindo com tal horror facial. O medo que ela tem do filo dos artrópodes vem de longa data o que é a razão de ela nunca ter se aventurado na garagem e poder argumentar ignorantia facti excusat, um termo jurídico. Ironicamente vem daí também o fato de ela viver espirrando R....d© apesar das minhas repetidas advertências de que essas espécies são resistentes à resmetrina e à aletrina trans-d. Os ingredientes ativos do R....d©. É bem verdade que ser mordido por uma viúva é um modo ruim de morrer em função da poderosa neurotoxina envolvida o que levou um médico lá atrás em 1935 a comentar, não me recordo de ter presenciado dor mais abjeta manifestada em qualquer outra condição médica ou cirúrgica enquanto que a toxina indolor da loxosceles reclusa ou aranha-marrom causa apenas necrose e severa perda de tecido. As reclusas manifestam no entanto uma agressividade natural de que as espécies de viúvas jamais compartilham a não ser quando ativamente perturbadas. O que ele fez. O interior do ônibus é de um plástico cor-de-carne com anúncios de serviços médicos e jurídicos dispostos sobre as janelas. Muitos par español. A ventilação varia segundo critérios tais como a lotação. A fobia se torna tão extrema que ela leva uma lata na sacola do tricô até que eu sempre encontro antes de sairmos e digo com firmeza, Não. Em um ou dois momentos lamentáveis de insensibilidade também eu fiz piadas sobre pegar o ônibus até as cercanias dos Estúdios e levar a Mamãe para um teste como extra em um dos muitos filmes de hoje em dia em que multidões de extras são pagas para olhar para cima aterrorizadas por causa de um efeito especial que só depois é inserido no filme através de processos informatizados. Do que eu me arrependo sinceramente, afinal de contas eu sou todo o apoio que ela tem. Na minha opinião no entanto é algo exagerado dizer que uma área frágil em um teto de garagem de vinte anos de idade é equivalente a não exercer os devidos cuidados ou esforços. Enquanto que Hitchcock e outros clássicos usavam apenas efeitos especiais primitivos mas com resultados mais aterradores. Isso para não falar de ele ter invadido o terreno e não ter nada que fazer lá em cima afinal. No depoimento. Para não falar nada de se argumentar que não prever que um invasor venha a cair atravessando um telhado de garagem e destruindo totalmente um complexo e dispendioso complexo de recipientes de vidro temperado e esmagando ou pelo menos incomodando uma grande quantidade de espécimes e inevitavelmente, devido ao incidente, acarretando certas evasões e a penetração da vizinhança circunstante equivalha a eu não ter exercido plenos cuidados. Sendo esse o meu argumento para preferir os clássicos do antigo cinema de horror. Recusando jamais colocar a valise sob o assento eu a mantenho no meu colo durante as freqüentes viagens. A minha posição durante todo o procedimento foi de um profundo e natural pesar pelo menino e sua família mas de que o infortúnio do que tinha acontecido como resultado disso não justificava acusações histéricas ou inverídicas de qualquer espécie. Um assessoramento de qualidade teria sido capaz de traduzir esse raciocínio para uma linguagem jurídica funcional em audições legais e discussões in camera. Mas a verdade é que o assessoramento se verifica abundante se você é o agressor mas não se você é meramente a presa, eles são parasitas, a TV diurna está infestada pelos seus comerciais que incitam o espectador a esperar pacientemente pela oportunidade de atacar, tratamos em uma base de percentagens, sem qualquer espécie de taxa se você é o agressor! Dava para vê-los saindo de todas as frestas depois do processo original da Mamãe. De fato ninguém sequer sabe como a neurotoxina da viúva opera para produzir dor e sofrimento tão abjetos em mamíferos maiores, a ciência fica sem resposta quanto a, evolutivamente, que vantagem existe para um veneno em muito excedente ao necessário para que esse espécime singular mas comum domine sua presa. Com freqüência a ciência se vê confusa diante tanto da luminosa viúva quanto da reclusa de aparência mais normal. E mais aqueles que dizem que realmente vão meter mãos à obra e trabalhar duro e lutar mesmo por você são uns frouxos como o tal suposto especialista em negligência da Van Nuys que a Mamãe recrutou. De outro ponto de vista a histeria teria sido quase cômica já que qualquer ambiente tão desleixado quanto a nossa vizinhança circunstante já estará naturalmente infestado por elas em todas as casas precárias e atulhadas. Tendo elas seu elemento nativo na abundância de abrigo que o entulho gera. Encontram-se espécimes com grande variação de tamanho e de agressividade nos cantos dos porões, embaixo das prateleiras dos paióis, garagens e armários de roupas, atrás de grandes eletrodomésticos e nos inumeráveis recônditos de entulho abandonado e jardins mal cuidados. Favorecendo particularmente as viúvas os ângulos retos mal iluminados para a construção das suas teias. Nos ângulos retos da maioria das estruturas no lado da sombra embaixo das lajes por exemplo nos meses de verão. Se você sabe onde procurar. Por isso os óculos transparentes e as luvas de poliuretano serem indispensáveis mesmo no box onde os ângulos retos podem ser invadidos mesmo em poucas horas de ausência. Sendo as viúvas há muito conhecidas como aplicadas tecelãs. Ou do lado de fora do ônibus em movimento nas palmeiras embaixo das quais eles ficam tão ingenuamente na sombra esperando os seus ônibus, Alugue uma escada e examine com cuidado o lado de baixo dessas frondes qualquer dia! dá vontade de gritar pela janela. Depois de condicionado a saber onde procurar elas com freqüência são observáveis em toda parte escondendo-se onde estão plenamente visíveis. Sendo a paciência outra marca registrada. Este hábitat e também mais para o interior ambos contêm a variedade mais exótica da viúva rubra cuja ampulheta ventral é marrom ou castanha assim como uma das duas espécies menores marrons ou cinzentas do hemisfério nas regiões desérticas mais-do-interior que preferem climas áridos. Faltando ao vermelho da viúva rubra no entanto o enfeitiçante lustro da familiar variedade doméstica negra, trata-se mais de um vermelho fosco ou opaco, e elas são raras e ambos os espécimes escaparam no infortúnio do menino e não foram readquiridos. Aqui como com tanta freqüência no reino dos artrópodes a fêmea é também dominante. Para ser franco a dor e o sofrimento da Mamãe apareceram algo exagerados na descrição do primeiro processo de negligência na verdade ela tosse menos que durante o seu próprio depoimento. Longe de mim no entanto desmenti-la graças ao peso do sangue. Sentada em casa com óculos escuros como sempre tricotando enquanto monitora as minhas atividades com o seu aparelho bucal trabalhando em vão. Cientificamente no entanto um grande mamífero teria de inalar grandes quantidades de aletrina trans-d para qualquer dano permanente surgir o que como previsto de fato influenciou a modéstia do acordo que ela conseguiu. A verdade mesmo é que menos de um centímetro para um lado ou para outro é diferença entre lisos olhos juvenis e a expressão crônica de Vivian Leigh no chuveiro no clássico de 1960 daquele título. A valise é ventilada em minúsculos pontos escolhidos em cada canto e 2.5 dúzias de aparos de poliestireno distribuídos por todo o interior podem proteger os conteúdos de impactos ou traumas. A complexidade do seu novo caso é como distribuir exatamente o processo de negligência entre o primeiro cirurgião cujo procedimento deu-lhe os olhos e a testa assustados e o segundo cuja vagabunda carnificina de reparo a deixou com uma máscara crônica de sofrimento apavorado e de terror que agora felizmente só pode causar incidentes no caso de alguém sentar-se no banco lateral oposto. Exatamente atrás do motorista. Por que a única exposição a riscos do posicionamento da Mamãe aqui é que qualquer indivíduo em tal assento imediatamente em frente a este estará em posição de olhar frontalmente para nós durante toda a viagem. Em certas ocasiões tal espécime acaba, se predisposto por condicionamento ambiental ou temperamento instintivo, por parecer presumir que o estímulo que causa a expressão nela sou eu. Que com as minhas dimensões e a minha marca distintiva que eu raptei esta aterrorizada mulher de meia-idade ou agi de forma de algum modo ameaçadora para com ela dizendo, Algum problema, senhora ou, Por que é que você não deixa ela em paz enquanto ela se afunda mais em seu cachecol de tricô ela mesma constrangida pela reação dessas pessoas mas a resposta que eu desenvolvi é sorrir calmamente e erguer minhas luvas intrigado e espantado como se dizendo, Ora quem sabe ao certo por que alguém tem a cara que tem meu bom amigo não tiremos conclusões com base em dados incompletos! Sua queixa original era que um operário na linha de montagem tinha de fato colado a válvula de uma lata virada para o lado errado, eu apresentei um caso claríssimo de negligência no exercício dos devidos cuidados. Sendo a quinta condição do acordo a de jamais sob quaisquer circunstâncias mencionar o nome comercial do spray doméstico comum em qualquer relação ao processo de negligência que estou disposto a honrar em nome dela, a lei é a lei. No que se refere ao acasalamento eu já estive em encontros mas a química foi insuficiente, a Mamãe é de um cinismo negro nas questões do coração referindo-se a todo o espectro dos rituais de acasalamento com um desastre à espera de acontecer. Recentemente, quando o ônibus atravessava o Victory Boulevard enquanto eu olhava para baixo para verificar a situação eu vi acidentalmente projetando-se de um dos buracos de ventilação no canto da caixa a ponta exígua de uma perna negra articulada, ela se movia levemente de um lado para outro e tinha a mesma coloração luminosa do resto dos espécimes, movendo-se tentativamente de modo exploratório. Invisível contra o negro mais inorgânico do exterior da valise. Invisível para a Mamãe cuja expressão de reação devo dizer levianamente não mudaria nem nos menores detalhes, depois que você se acostuma ela é como um rosto de pôquer. Mesmo se eu abrisse toda a caixa bem ali no meu colo e a virasse no corredor central permitindo veloz propagação e penetração dos arredores delimitados. A pior situação possível só ocorria quando se confrontava alguma dupla de vagabundos ou organismos hostis no assento da frente cuja reação à Mamãe podia ser um agressivo olhar de desafio ou um agressivo, Que p...a você está olhando. É para um tal caso que eu sou o acessório semático ou acompanhante dela, com o meu tamanho imponente e os meus óculos pode-se ver sob o ricto congelado que ela acredita que eu posso protegê-la o que é bom.

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DAVID FOSTER WALLACE - SUA ESCLARECEDORA E FAMOSA

PALESTRA DE FORMATURA NO KENION COLLEGE, EM 2005

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando dfwem sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

– Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

– Água? Que diabo é isso?

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Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude – mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

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Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

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Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

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Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

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Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

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Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

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Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

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Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

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Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

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De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

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É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

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Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

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Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

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Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

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Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

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Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

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Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.

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Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

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No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

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O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

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O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

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Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

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Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”

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É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo,

um dia depois do outro.

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So long, David, se eu merecer o paraíso, te encontro lá.