MALDITA LITERATURA

Um Cotidiano Literário

Quem não tem um cotidiano literário.

Um dia não tive, quando ainda analfabeto, lá pelos seis anos de idade.

Então, nenhuma mácula. Meus dias eram completamente infensos de influências e as coisas aconteciam sempre pela primeira vez. Ou deviam.

Pois desses dias tenho vagas memórias limitadas a acidentes inesquecíveis, sustos memoráveis e revelações inolvidáveis. Os eventos, lugares e pessoas que cercam aquele gurizinho das fotografias podiam ter acontecido com qualquer outro.
Os anos foram passando e com eles os livros. Milhares, muitos desde sempre. Qualquer um que me caísse nas mãos não importa se para minha idade e de preferência alguns que não devia ler, de tão pequeno. Hoje, depois de anos assimilando livros sem e com critério, lendo por acaso, por gênero, por indicação, por qualquer motivo e nunca por obrigação, o cotidiano literário é a praga de meus dias.
Começa antes de acordar, na verdade. No espaço estreito entre o estar desperto e o acordar, lembro inexoravelmente, claramente e insistentemente, da porcaria da passagem de um livro que li quando moleque, subtraído da estante de meu avô, capa mole da biblioteca das moças – sei lá – chamado “O Sono Eterno”, um policial de Raymond Chandler, que tem pouco a ver com dormir e muito a ver com um velho envolto num cobertor. Tem dias que consigo molestar a lembrança dizendo a mim mesmo que não é o sono eterno do vagabundo que quer continuar dormindo, mas quase sempre lembra a morte mesmo. A sensação amarga e negativa demora a passar.
Vou passar depressa pela próxima, atividade fisiológica cotidiana comum todos os seres humanos em bom estado de saúde, mas cercada de preconceitos. Quando estou sentado no vaso, pois assim faço para o número um e para o número dois e este é o dever de qualquer homem casado, Paul Atreides me explica em detalhes como usa o traje destilador para reciclar a urina através de um engenhoso método de bombeamento a partir das solas das botas e como o produto resultante ainda lembra um pouco o gosto lá do começo e como essa prática faz dos fremens de “Duna” os guerreiros mais temíveis do universo. O devaneio não intencional demorou muito mais do que os poucos segundos necessários para o descrever em síntese.
Ainda meio pessimista, olho para minha cara no espelho, escanhoando a barba com cuidado. Então, localizo aquele resto de sabão no canto da orelha, no fim do pescoço. Jogo água até não restar nenhum sinal, pois se impõe em minha memória uma passagem do livro “Rumo a 1984” de George Orwell, quando o personagem é interrompido por seus filhos antes de terminar de retirar todo o sabão que a lâmina de barbear refugou, refletindo que aquele espaço da pele vai ficar grudento o resto dia. Me vejo como ele, num banheiro escuro de uma casa suburbana dos arredores de Londres, oprimido pelo trabalho, pelas obrigações, pela lei, pela carência, por tudo e por todos. É um livro apoiado no sucesso do “1984”, que resgatei de um sebo qualquer por querer mais do mesmo, É bom, como o de Shandler, mas o maldito ficou gravado e todo dia ressurge com a mesma intensidade, imperativo e inevitável, quase tanto mais intenso quanto mais sufocado. E é inútil tentar fugir fazendo a barba de tarde ou de noite ou debaixo do chuveiro ou sem espelho.
Quando me corto, o que sempre acontece quando inauguro uma lâmina nova, lembro sem falta de “Amor Sem Limites”, do Robert A. Heilein. O papo é o seguinte, Lazarus Long é um cara quase imortal por causas naturais que uma vez perdeu metade do nariz numa briga de bar. Pois o nariz cresceu de novo depois de uns cem anos, sei lá. A tese do sujeito era que um órgão amputado podia se regenerar se lhe dessem muito tempo. Não me lembro direito desse livro bobo, prefiro outros desse autor, tipo “Um Estranho Numa Terra Estranha”. Na verdade li todos os livros dele que estavam disponíveis em língua portuguesa, mesmo uns editados pela coleção Argonauta, na minha fase mais aguda de ficção científica. Mas é engraçado como a memória funciona e remete sem piedade para uma referência em prejuízo de todas as outras.
Não é que sejam lembranças boas ou más. São aborrecidas e se metem sem convocação, interrompendo pensamentos e despertando as mesmas reações de sempre, sempre na mesma hora. São como porteira no meio da estrada por onde vou desembestado. Tenho que parar, saltar, abrir e só depois continuar.

Outra opção é ficar ali mesmo rememorando a memória indesejada e é preciso um pouco de força de vontade para seguir adiante. É irritante. Mas o dia nem bem começou. Dali a pouco, estou coando (ou passando) o café quando sou abduzido por um menino de grandes olhos registrantes. O Pedrinho Nava chingando o pior jeito possível de fazer café dentre as mil formas usadas em Minas Gerais, perpetrado por sua avó. Fervia café com açúcar até virar uma pasta forte e melada, daí era só por água fervendo, tudo isso no “Baú de Ossos”, que imagino como se estivesse à beira do enorme fogão a lenha daquela cheirosa cozinha mineira com o pomar logo além da área dos fundos. Nava como lembrava, rememorava. Esse nome é assim pretérito, outros são imperfeitos como Farias, não fará por qualquer motivo. Outro dia como ontem, fazendo café e lembrando o trecho do livro. Mais ou menos como passar mal sem querer ao ouvir Beethoven, por força do condicionamento insano em “Laranja Mecânica” de Anthony Burgess. Não, Pedro Nava não!
Café passado, abro a geladeira para tirar a manteiga. Se a geladeira está em ordem ou se está cheia de potinhos com diversos restos de comida de outras refeições, dá na mesma. Sempre me lembro daquela passagem do Stephen King onde me parece que o personagem entra num trailer e entre outras coisas abre uma geladeira, observando o tanto de potes com restos de comida. Diz que se pode identificar uma pessoa relaxada ou porca mesmo só de olhar esse detalhe. Estou enrolando por não me lembrar do nome do livro. Todos os dias abro geladeiras e lembro a mesma coisa a cada vez e depois sempre me pergunto o nome do livro, só me lembrando que é grosso, de capa preta, sobre uma casa misteriosa e tem também uns motoqueiros do bem que se ferram.
Saio para a rua e, do outro lado, vejo uma mulher na janela. É implacável a reação desencadeada e declamo, me vendo extasiado, um “mas-espera-que-luz-é-aquela-que-brilha-na-moldura-da-janela-ó-janela-ó-janela-és-o-nascente-e-Julieta-o-sol-resplandecente” e não tem jeito de parar, nem que seja uma mulher feia, velha ou gorda e nada tenha de Julieta. Uma mulher na janela é a condenação e a pena uns intermináveis segundos declamando, entrando e saindo de uma memória que não pediu licença para dominar o consciente. Essa do Shakespeare não tem hora marcada, pois eclode sempre que mulher e janela se associam para imantar minha cabeça, podendo surgir várias vezes no mesmo dia e desencadear a mesma ladainha.
Um ônibus passa por mim, dá sinal de luz e reduz a marcha para acertar o ponto, uns metros adiante. Pronto. O saliente espelho retrovisor dianteiro magnetiza meus olhos, brilhante e ameaçador. È a chave de ignição de uma lembrança sem freio. Levo a mão ao peito como se tivesse tomado uma bordoada. A cidade em torno já não é a minha de todos os dias, mas outra, com minaretes pontudos vermelhos ao fundo de uma praça enorme. E o velho Jivago cambaleia com a mão no peito atingido pelo espelho retrovisor do ônibus, perdendo para sempre qualquer esperança de alcançar a sua Lara, que sequer é a menina que vai em frente sem olhar para trás, sem ver Jivago morrer na calçada molhada do início da primavera. Essa é uma cena que desconfio não corresponder exatamente ao escrito pois pode ter sofrido acréscimo ou corte, de tantas vezes repassada desde que li o livro do Boris Pasternak, por ter apenas nove anos quando passou no cinema e não me deixaram ver. Outras podem ter sofrido ou melhorado e só vendo o texto de novo para me certificar, mas não olho, seria meio masoquismo reforçar ainda mais o que já está tão latente. E juro que não consultei nenhum dos livros mencionados para dar verossimilhança a esse meu relato, limitando-me a descrever como sempre aparecem.
E não faz nem uma hora que acordei. Melhor seria de minha memória fosse pautada por canções, cada situação do dia embalada por uma música, como uma trilha sonora que marcasse o ritmo de cada momento, permanecendo em segundo plano ao fundo, sem atrapalhar o curso normal de meus pensamentos. Como será? a primeira hora de alguém que é envolvido por músicas ou filmes ao invés de livros. Tal momento um Bob Dylan, outro um tango ou uma valsa. Música não deve ser tão pegajosa a não ser que o ouvido seja especialmente dominante entre os demais sentidos. Filme deve ser mais comum, principalmente os vistos no escuro do cinema, com todo aquele som envolvendo e a atenção focada na tela e mais nada. Como chiclete no cabelo, passam a compor o seu cotidiano pop e cada lance da vida remete a uma cena, lembra um personagem e se compara a uma história. Seriados de TV também devem colar fundo, desta vez pela repetição semanal por anos a fio. Se alguém saca um celular é o Capitão Kirk de “Jornada nas Estrelas”. Se a polícia passa é xeque mate rei um para cheque mate rei dois os boches estão por todo o lado, de “Combate”. Ou dando uma volta, será que existe? quem fique associando detalhes de seu cotidiano a gibis (estória em quadrinhos, comics), que ao mexer um molho lembre do cozinheiro Resina (Gosma?) do Recruta Zero, eternamente com um cigarro na boca donde uma cinza se equilibra.
Algumas memórias recorrentes são estimuladas por circunstâncias mais raras. Por exemplo, sempre que cruzo com alguma referência inglesa, britânica em geral e irlandesa em particular, se bem que escocesa também detona, vejo Stephen Dedalus sendo gozado pelo Mulligan, no começo do “Ulisses”. Ainda bem que não ocorre todo dia e que essa é a única parte do livro que ficou, apesar de ter lido duas vezes memoráveis, a primeira comecei bebendo conhaque, fumando um charuto cubano de verdade e ouvindo Mahler, depois de ter lido de novo o “Retrato do Artista Quando Jovem” e o “Dublinenses”, para fins de aquecimento. Anos depois, tendo desistido de esquecer, li de novo mais devagar e sem frescura.
Na zona de nacionalidades, um estopim para outra associação imediatamente seguida por pelo menos dez minutos de lembrança intensa, envolvente e dominante como todas, é o francês. Não sei bem o motivo para me fazer lembrar do Maior Poeta e Prosador da Língua Portuguesa que jamais escreveu qualquer texto, perorando com um toque dândi afetado que qualquer outra língua além da pátria deve ser falada patrioticamente mal. Não duvido que Eça de Queiroz tenha inventado Fradique Mendes, mas dificilmente Fradique inventou o Pacheco, um talento enorme, como todos sabem. Essa é agradável, desencadeia uma série de pensamentos divertidos que não perdem a graça mesmo após a centésima rememoração. Chato mesmo, mas, mesmo (!), é ver mulher nua, Já imaginou ter sempre o mesmo pensamento recorrente sempre que ver mulher nua? É patético mesmo que seja uma passagem sensual e agradável. É muito mais por ser uma arrematada besteira. Acontece quando tenho uma mulher ou quando vejo nas revistas ou em filmes. Na deixa e sem mercê. Num fim de dia de verão, ao longe o horizonte ainda avermelhado e acima as estrelas começando a firmar a noite, uma voz infantil canta num ritmo que desconheço: “eu quero uma mulher bem nua, uma mulher nua eu quero ter, de noite no clarão da lua eu quero o corpo da mulher”, enquanto seu dono balança os pezinhos montado no primeiro galho de um pé de laranja lima. Suportável se parasse agora, a lembrança continua com um homem irado que sai de dentro da casa e grita “o que você está cantando? repete!”, ele repete achando que o cara gostou, levando uma surra de cinta. Pode uma coisa dessas? Se nem me lembro de ter lido esse livro, de tão pequeno eu era? 

Refuto qualquer análise dessa automática associação de idéias, do tipo desejo e culpa ou do princípio do prazer suprimido pela figura paterna repressora e irrazoável. Na verdade prossigo normalmente o que estou fazendo e a lembrança bizarra não altera nem um pouco o desempenho, mas é chato.
Depois que me dei conta das memórias recorrentes, elas ficaram mais chatas ainda. Umas mais irritantes do que outras, todas odiáveis, nenhuma que tivesse escolhido. Se tivesse opção, encolheria entre milhares de outras passagens que lembro por vontade própria, escolhidas dentre os melhores trechos dos melhores autores, sendo pretensioso quando quisesse impressionar, frívolo quando quisesse divertir, ilustrativo para ensinar e assim por diante. 

Mas não é essa a regra do jogo do qual participo involuntário, pois que recordo autores tão literariamente incorretos como José Mauro de Vasconcelos e Frank Herbert dentre tantos outros mais aceitos nos cafés literários e fóruns virtuais por esse mundo afora e não nesse cotidiano pouco literário. Pode ser que a regra tenha origem no fato de que cada uma destas passagens tenha produzido uma pergunta em mim, no momento em que li cada um dos textos. Se sabão não enxaguado vira cola mesmo; adianta bater num menino que nem sabe o que canta; se uma batida no peito provoca um ataque cardíaco; que amor é esse que confunde a amada com um sol; quem esse bruto ignorante do Mulligan pensa que é; como uma lembrança de menino pode ser negativa. Tantas perguntas que ruminei até acabarem sedimentadas e talvez sem resposta até hoje. Possa ser.
O caso, é que estou me expondo ao ridículo, abrindo a intimidade de meus pensamentos em letra. Devia usar esse poder da literatura para escravizar para toda vida os leitores. Onde tigres ávidos rondam ingênuos observadores sossegados. Escreveria um livro sem maiores pretensões, temperado com aventura, prazer, tensão, humor e espírito, em quantidades e doses irresistíveis, disputado entre os leitores comuns e lido secretamente pelos intelectuais. Entre cenas memoráveis e cativantes, introduziria armadilhas no cotidiano comum a todos os leitores. Sacanagens puras, como a cena em que aquela mulher maravilhosa troca os tatus de um nariz para outro enquanto toma banho, olhando demoradamente cada um, descrevendo cor e textura, como se fosse natural. Mensagens subliminares para o sujeito leitor, associando seu dia a dia com memórias escabrosas, aparentemente inócuas e todas francamente linkadas aos hábitos de todos nós. É o que chamam de usar talento para maldade. Chamo de procurar dividir com o maior número possível de pessoas um irritante cotidiano literário.