terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O Manual do Piloto do Planeta Terra

O Manual do Piloto do Planeta Terra


Ver o Mar pela primeira vez foi inesquecível.

Eu tinha, já, dezoito anos de idade e nunca havia visto o Mar.  Sempre morei , no mínimo, a uns quatrocentos e cinquenta quilômetros do litoral. Família simples, poucos recursos, essa foi uma experiência que a vida me foi adiando, adiando, até o dia de ser capaz de entender completamente onde estava me metendo.

E saibam que fiz minha reentrada no planeta à beira do mar de Camboriú, onde meus pais celebraram lua de mel!

Fui numa kombi surrada tocada pelo Alfredinho, primo perito em qualquer motor. Foi também o primo Antoninho, tio Alfredo irredutível e invencível, minha mãe, todo mundo lá de casa passando o dia em Praia de Leste. Farofas e sucos, lona estendida, dia curto para tanto.

O Mar, hoje sei, é um enorme sem sentido abandonado ao extravagante, mas naqueles dias não tinha ainda reunido essas palavras na minha cabeça. O Mar era o Mar! Imagine aí comigo como foi.

Lá pelo meio da tarde, andei pela praia até ficar sozinho.

Sentei na areia procurando Nereidas e Sereias na crista das ondas, deixando os olhos divagarem e abrindo os outros sentidos. Depois de muito tempo fui até as ondas bem devagar para não assustar ninguém e senti meu eu se espalhando através e uno com a massa d’água infinita, eu e o Mar banhando continentes inteiros com marés e ondas incessantes.

Todas as ondas se acalmaram à minha volta e tocaram meu corpo com carinho, quentes e sensuais.

Mas há um limite para a absorção de vivências extraordinárias. Os sentidos ficam sobrecarregados como fracos disjuntores sujeitos a altas energias. O Mar fascina e atrai, mentido que posso viver para sempre dentro dele. Pobre seduzido cérebro ignorante. Assim, as ondas me levaram de volta para a areia segura onde estou condenado a viver, sempre doces e delicadas.

Embebedado, deito na areia fofa e seca, agarro punhados de areia, moldo entre meus dedos e sinto todo o Planeta Terra sob meu absoluto controle.

Sinto e vejo a mim mesmo ali deitado na beira da praia de pernas abertas, braços ao longo do corpo e mãos enfiadas na areia, na costa do Sul do Brasil, olhos abertos para o céu azul e para o espaço que envolve o Planeta.

Não é fácil pilotar o Planeta Terra.

Ele se move em torno do centro da Via Láctea junto com todos os planetas do Sistema Solar, na velocidade de quase quinze mil (MIL!) quilômetros por hora. Ele se move também em torno duma estrela particular chamada Sol, a cento e sete mil (MIL!) quilômetros por hora. E se move em torno de si mesmo, como um pião, numa volta completa a cada dia. E é um planeta GRANDE.

Você tem que manter todas essas direções e velocidades sempre constantes, através de movimentos leves dos dedos, sem alterar a inclinação do eixo ou perturbar a atração gravitacional da Lua. Não pode perder nem por um segundo a firme concentração, sentindo e visualizando o Planeta Terra como uma nave autopropulsada, sensível, auto-suficiente, frágil diante de forças muito maiores que encontra pelo caminho, trafegando pelo grande estrada que lhe compete no Espaço, girando, circundando e circunavegando numa dança eterna. Afinal, trilhões de seres vivos dependem disso.

Fiquei ali até não aguentar mais a tensão de estar tão concentrado, cansado à exaustão, feliz e realizado por ter feito uma coisa útil.

Desde então, sempre que vou ao Mar novamente, piloto o Planeta Terra.

Assim se passaram quarenta anos.

Nessa última vez, deitado na areia de Maragogi, descobri uma coisa nova. Eu não sou o único Piloto do Planeta.

Existem milhares, talvez milhões, de outros pilotos como eu que se deitam na praia, agarram a areia como se fosse a crina de um cavalo sempre indomado e dirigem o globo terrestre inteiro através do Espaço. Nos revezamos e sempre um de nós mantém o controle e sempre foi assim desde o princípio.


E eu juro a vocês,
nenhuma palavra aqui é ficção.


Maragogi, Alagoas
Faço este exercício como técnica de meditação, concentrando a atenção até o máximo suportável, focando até o cansaço.
Mas hoje, lendo "Todos os Belos Cavalos" (All the Pretty Horses), de Cormac McCarthy, encontrei este trecho:


John Grady e seu primo Rawlins, 16 e 17 anos, saem de casa no Texas e cavalgam até o México. Cultos, educados, cavaleiros, honrados e homens. É um dos melhores livros que já li em minha vida, com certeza.

Encontrar este texto tão igual ao meu, escrito em 1992, onde o personagem faz algo que sempre fiz há 40 anos e que julgava tão individual e extraordinário, é emocionante.

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