segunda-feira, 17 de junho de 2013

A Aparição do Cantor Triste


A Aparição do Cantor Triste

Contar como começou, espalhou-se e terminou o fenômeno causado pela aparição do homem conhecido como O Cantor Triste, é o trabalho mais fácil do mundo. Difícil é abordar a estória de um ângulo ainda não explorado à exaustão por outros jornalistas.

Ainda é memória fresca nos programas de TV e nas redes sociais, com cada dia mais acessos nos vídeos postados no YouTube.

O que se sabe é que numa noite qualquer de outono, em Maio, apareceu um homem de idade indefinida mas definitivamente nada jovem, magro, um metro e oitenta, louro e de olhos quase certamente azuis, vestindo roupas boas e bem usadas, botinas tipo workman, moleton com um grande capuz sempre cobrindo a cabeça e deixando o rosto na sombra. Carregava um violão bem velho, hoje identificado como um Del Vecchio elétrico e um banquinho redondo de madeira escura que rangia quando ele se ajeitava para tocar.

Às nove horas d’uma bela noite de sexta, instalou o banquinho no canto da Galeria Julio Moreira, depois da entrada do TUC, Teatro Universitário de Curitiba. É ainda um lugar escuro e pouco iluminado, pois o teatro raramente está aberto e as luzes mais fortes do lugar são de algumas lanchonetes e lojas alternativas do outro lado da galeria. Assim, o canto é escuro, sem pintura, sombrio como só o cimento cru de um lugar subterrâneo pode ser.

Esta galeria é apenas uma passagem sob a rua Stellfeld, ligando o Largo da Ordem à Praça Tiradentes, feito para servir as pessoas que tomam os ônibus parados de um lado e querem passar para o outro de uma rua larga e movimentada. Na prática, muito pouca gente usa a passagem, preferindo arriscar atravessando no meio de carros a descer a escada, percorrer os poucos cinquenta e poucos metros da galeria e subir a escada do outro lado. Se não fosse pela esfiha de um turco velho que tinha uma lanchonete ali em 95, eu mesmo não conheceria tanto o lugar.

O primeiro registro oficial de sua presença deve ter ocorrido naquele mesmo dia.

Contou o guarda municipal F. S. S.: descia a escada vindo da Praça, quando ouviu alguém cantando e identificou à sua esquerda um homem sentado num banquinho e tocando violão. Imediatamente adotou a postura indicada para interpelar o artista de rua munido do argumento de que não era permitida aquela atividade no local, devidamente secundado por seu companheiro de patrulha. Mesmo com tanta e marcial presença o indivíduo não cessou sua atividade quando, estava o diligente agente de segurança pública pronto a reestabelecer a ordem, sentiu que aquela música o cativava. Em silêncio, ouviu a canção até o fim. Diz o guarda: ele tinha um jeito especial de tocar e a voz era calma e firme. Terminada a música, começou a levar o braço para sacudir o indivíduo quando sentiu seu companheiro segurar seu ombro com firmeza. Olhou para o colega e ele tinha os olhos cheios de lágrimas, dizendo: deixe tocar mais um pouco. Ouviram outra música e mais uma, essa ele conhecia, mas nunca tinha ouvido cantada desse jeito. Quando o indivíduo acabou, levantou, pegou o banquinho e foi embora sem tirar os olhos do chão. Os guardas e algumas outra pessoas ficaram apenas olhando o homem ir embora e todo mundo demorou para se mexer e continuar cada um tratando de seu assunto.

Na outra sexta, mesma hora, segundo o dono da banca de revistas do local, o cantor apareceu de novo. Era uma noite anormalmente quente para a cidade e a estação. Tinha muita gente indo para os bares do Largo da Ordem para aproveitar uma dessas noites eletrizadas quando todo mundo resolve dar uma saída.

Três meninas, todas com seus quase vinte anos, dizem que estavam rindo e bobeando pela escada, brincando que a Galeria escura devia ter um tarado para cada uma, quando ouviram a primeira nota. Foi só a primeira e era muito especial, parecendo um gemido longo e doce, segundo elas. Era o começo de uma balada do Vampire Weekend que uma delas conhecia. Diz ela que a música era só um som lento antes de ouvir da boca do cantor, pois agora percebia que era uma música triste, de uma tristeza que segurava a gente e fazia chorar. Elas olharam para os lados, ainda com medo dessa Galeria escura, mas havia dois guardas municipais parados logo atrás delas e se sentiram seguras para ouvir o cantor até o final naquele dia.



Naquela noite, outra testemunha conta que atravessava a Moreira para tocar no V. B., quando teve que parar assim que ouviu o cantor. Não foi o único, pois já havia um monte de gente parada em torno do ponto mais preto do lugar. Notou as meninas bonitas, quatro guardas, trabalhadores e todo tipo de gente só ouvindo. O cara – inevitável chamar de “o cara” um roqueiro curtido - é músico há uns trinta anos, da formação original do Blindagem, escolado em todo tipo de som e com pouquíssima tolerância a amadores. Tem o olhar meio perdido de quem ficou sem o Ivo Rodrigues. Primeiro notou o dedilhado. Era uma coisa diferente, com uma pegada lenta e firme no pinho (sic), cada dedo da mão esquerda nunca parava realmente numa corda, acariciando cada uma e fazendo o som chorar um pouco mais. Aquele toque a mais era quase imperceptível mas estava lá. A mão direita dava à música uma levada cheia de meios toques, solando, acompanhando e floreando ao mesmo tempo. Deixo o cara dizer: “... e olha que era uma dessas músicas dos anos setenta, dessas coisas melosas que ainda tocam nas rádios light e easy da vida, Hotel Califórnia, nunca curti, mas era como se nunca tivesse ouvido antes. Os rifes estavam ali, melhorados de alguma forma e senti a voz dele vindo em ondas e nem era uma grande voz, mas vinha bem assim mesmo e me parou prá ouvir. A Hotel terminou, ele respirou fundo, sempre sem levantar a cabeça coberta pelo capuz e começou a tocar Skin And Bones, do Foo. Deus do céu, eu queria tocar assim”.

J. M. O. é porteiro na Ritz e fica no trabalho até às nove, indo direto atravessando a Tiradentes e passando pela Moreira para pegar o Mercês Guanabara que para na Stellfeld. Naquele dia parou para ouvir uma música que tocou no seu casamento. Fala que nunca tinha notado como a música era tão doída. Quando tocou na igreja, ele e a mulher parados na frente de todo mundo, parecia música de amor, para dançar agarradinho. As poucas palavras que entendia em inglês, love a woman, somebody e forever, falavam de romance para ele. Achava meio enjoada, mas tinham assistido o DVD do filme com aquele ator, o Johnny Depp, e caiu bem no casamento. Só percebeu que era muito triste naquela noite, era sobre um amor lindo que não tinha como dar certo. Ligou para a esposa e gastou todo seu crédito de celular para que ela ouvisse também. A Galeria estava tão quieta que dava para ouvir perfeitamente. Quando chegou em casa, ela ainda chorava.


 
Na terceira noite, V. A. voltou mais preparada e racionalizada pela semana de afastamento e reuniu coragem para levar uma boa câmera digital com tripé e gravar o cantor, dando ao arquivo de mídia postado no YouTube o título de O Cantor Triste.

Deixo ela mesma se justificar.

Gravei sim. Mais para provar para as pessoas que eu não estava louca. Na primeira vez, quando cheguei em casa e comecei a postar para os amigos a foto que tirei e falar do cantor, enfrentei muita zoação. Diziam que eu estava boba, o cara não podia ser tudo isso, eu era uma deprimida mesmo. Isso prá dizer pouco! A semana inteira só ouvi o pessoal achando que eu tinha virado tiete de cantor de rua. Então eu gravei. Desde a hora que ele chegou, até o fim. Não! Ele nem reagiu com a câmera. Só pôs o banquinho, sentou e tocou. Não repetiu nenhuma música, não descobriu o rosto, nem olhou prá ninguém. É bem como está no vídeo. A única coisa diferente foi que parou para olhar a caixa com dinheiro antes de ir embora. O mais engraçado é que a Galeria estava cheia de gente, a maioria assistiu toda a apresentação e quase todo mundo chorava sem vergonha no final, mas ele saiu na boa, sem que ninguém cumprimentasse, agradecesse ou sequer tentasse falar com ele. Só abriram caminho e ele se foi. Assim sem mais. ( Ela faz uma pausa, sorri e confessa.) Gravei tudo e quase esqueci a câmera. Já ia embora quando chutei o tripé e quase perdi tudo. Fiquei meio boba outra vez. Não! Eu não acho que ele seja triste e me arrependo de ter dado o nome de O Cantor Triste ao vídeo. Não é tristeza, é sensibilidade. Quando ele canta e toca, ele desbanaliza a tristeza, entende? Torna a tristeza uma manifestação de sensibilidade nesse mundo maluco que a gente vive. Afinal, o vídeo bombou no planeta, até a Yoko Ono deixou comentário, o Brian Adams compartilhou, Alice Cooper disse que chorou quando ouviu I Never Cry. Não é louco tudo isso?”

Sobre a caixa com dinheiro, é preciso lembrar fato conhecido de todos. Naquela terceira noite, alguém empurrou uma caixa de All Star Converse para a frente do cantor, logo nos primeiros acordes de Bridge Over Troubled Water. No final, enquanto ele punha o violão debaixo do braço e apanhava o banquinho, o pessoal depositou exatos R$322,00. Como sabemos? Pois ficaram ali mesmo, abandonados. Ele apenas parou por uns segundos diante daquela caixa cheia de dinheiro, olhando para o chão como se fosse um buraco e sem saber se devia pular por cima ou contornar. Resolveu contornar e apenas ir embora. Foi o guarda municipal F. S. S. quem finalmente pegou a caixa, contou o dinheiro, guardou de volta na caixa, escreveu o valor na tampa e amarrou. Quando me contou seu primeiro encontro com o cantor, dias depois, ainda carregava a caixa intacta para provar seu ponto de vista: o Cantor Triste não estava ali cantando para ganhar dinheiro, só cantava e nada mais, não havendo nenhum motivo para ser enquadrado como artista de rua. Era apenas um cidadão que resolveu cantar na rua e não havia lei nenhuma contra isso.





Na seguinte sexta-feira, a noite estava horrível. A semana começou seca e fria, logo esquentou, depois choveu dois dias seguidos e o resto ficou nublado, frio e ventando forte do Sul, chegando na cidade uma mistura de mistrais e minuanos inóspitos. Ainda assim, não se sabe se por efeito da bombada do vídeo na internet, pelo despertar do interesse da imprensa no fenômeno ou por legítima devoção da tietagem, a Galeria Moreira começou a encher desde as sete horas. Eu cheguei às seis e de agora em diante posso relatar o quanto vi e ouvi.

Um dos ouvintes estava lá esperando o tempo passar dentro do TUC, cercado de atrizes bonitas de doer mais o Chico Teha e nem aí com o tempo gelado, pois, faça frio ou faça sol, anda sempre de calças curtas, Paulão F., é um soberbo ator e diretor que vive 24 horas por dia em estado proto-maníaco, muito agitado e ágil apesar ou a propósito do corpanzil e foram dele as observações mais bizarras sobre o Cantor Triste. Lá vai algumas, no seu estilo rápido e telegráfico.

“Estive aqui na semana passada. Cheguei tarde e ouvi só umas três. Mas deu prá sentir. Tinha muita gente e não deu contato visual. Não é fácil explicar prá quem nunca ouviu pessoalmente. O vídeo não passa nem a metade da sensação de ouvir ao vivo. Quando acabou, fiquei pensando como soaria o Kurt Cobain se tivesse passado as últimas horas de vida antes de dar um tiro na própria cara tocando suas músicas para si mesmo. No dia seguinte, pensei seriamente se não seria o “O Homem que Caiu na Terra” ainda andando ‘pela aí’ sonhando em voltar prá casa, pois só ele mesmo seria capaz de dar a total dimensão da dor de sua saudade... não sabia que Starman podia ser cantada daquele jeito”.

Outro chegou e se refugiou da aglomeração dentro do TUC, pois conhece e se dá bem com todo mundo. Era a primeira vez de Carlos Calwo e estava cheio de expectativas. “Não gosto muito de baladas românticas pois tem muito trapaceiro no gênero. O sujeito pode ser falso como uma balada feita sob encomenda, tipo o produtor do Phil Collins recomendado que “falta uma pitada mais romântica nesse álbum, Phil” pensando, é claro, no gosto de suas balzaquianas. Depois manda um e.mail desfazendo uma relação de amor e todo mundo fica sabendo. Outros, podem ser verdadeiros canalhas, como o Axl mandando ver uma balada romântica que parece mais estar lamentando a falta daquela bitch preferida que sabia guardar a cocaína prá ele e era tão boazinha quando avisava do resto de pó branco na ponta de seu nariz. Ainda tem as baladas no varejo dessas megas bandas por aí, os caras bocudos gritando que estão apaixonados, sim senhor! pois dentro desse colete de couro tem um porco com coração. Fico na minha até conferir.”
Todos demos passagem para o pessoal do TUC carregando um praticável. Levaram o quadrado de madeira de cinquenta centímetros de altura por um e meio de comprimento para o canto onde o cantor costumava ficar. Logo atrás veio um técnico com uma fonte de luz para ser instalada do lado de fora. Seria interessante a reação do cantor a esse palco improvisado.

Outra testemunha presente, podendo ser livremente escancarada, o crítico musical, colecionador e editor Aramis Milarch, tem teorias interessantes sobre o Cantor Triste. “Parece incentivar a provocação quando toca músicas cansadas e ruminadas à exaustão em nossos ouvidos, nos filmes e rádios, cooptadas pela propaganda, banalizadas ao ridículo, quando faz diferente, melhor e ao mesmo tempo idêntico ao original. Escolhe sempre canções completas. Ou seja são músicas COM melodia. Não são apenas músicas com ritmo, arranjo e orquestra. Há sempre uma linha melódica simples e agradável em cada uma delas. Como dizem, das boas. Todos os compositores fazem cada um seu punhado de canções, ou músicas com belas melodias, alguns parecendo perder com o tempo essa inspiração e prosseguindo – ou persistindo – com músicas desprovidas de alma melódica. Veja o último álbum do David Bowie, ou o mais recente do Tom Waits, mesmo do Biffy Crillo. Parecem arremedos toscos, imitações baratas e apagadas de seus próprios dias mais iluminados”.

Aramis faz uma pausa, observa o esforço do pessoal do TUC afinando a luz sobre o praticável e complementa, sombrio: “espero que a FUCUCU não estrague mais essa”.

 


Enquanto isso, as pessoas chegavam. Quem já havia presenciado o Cantor, ouvia os ignorantes novatos com um sorriso condescendente.

Maria R. tem um programa matinal de entrevistas e música e chegou se esgueirando entre as pessoas já apertadas na Galeria estreita. Mulher de beleza exótica e olhos de uma inteligência evidente, quase intimidadores, também aguarda uma nova experiência. Veio por ouvir falar e ver o vídeo, reconhecendo estar armada contra fenômenos fugazes de gosto duvidoso. “A fronteira entre Eros e Thanatos é muito tênue. Ambos são processos de crescimento e mudança. Mas veja as pessoas lá fora. Todas calmas, só esperando, sem agitação, quase passivas. Não, maconheiro é pacivista. Eles estão pacíficos. Muito estranho... ninguém bebendo, nenhum fumando...”.

Verdade! Toda aquela gente estava bem comprimida, até ao longo de ambas as escadas de acesso, exceto pelo círculo mágico agora bem marcado pelo praticável. Mas não havia empurra-empurra, nervosismo. Alguns até conversavam em voz baixa compondo um burburinho uniforme de platéia erudita no Guairão. Enquanto isso, boa parte da classe artística e intelectual procurava refúgio no pequeno teatro. Uma jornalista da Globo local tomava, com seu câmera e sonoro pareciam discutir com o CEO da Fundação. Cheguei mais perto, ocupando um espaço na roda de conversa e ela me olhou sem me reconhecer, continuando a falar com o outro. Estava muito aflita, enfatizando palavras chaves com gritos e dando golpes com as mãos espalmadas numa mesa imaginária.

“Entrevistei muitas pessoas na sexta-feira passada, principalmente quem ficou perambulando meio sonâmbulo pelo Largo da Ordem. Tinha gente de todo tipo e idade TODAS com olhar meio perdido, como... como o olhar de Peter O’Toole em Laurence da Arábia, ENTENDE? Eu sempre fazia a mesma pergunta: de qual música você mais gostou? qual a que mais mexeu com você? E as pessoas citavam uma ou duas sem hesitar. E EU concordava, pois também tinha me emocionado com a mesma música. Pode ver nas gravações! Então fomos ver a gravação de toda a apresentação daquele dia. Gravamos do começo ao fim, TODAS as músicas. E a loucura da coisa é que as pessoas citavam músicas que ele NÃO CANTOU! Ele não cantou Only You, nem With or Without you do U2, nunca cantou nenhuma dos Beatles, nem do Tom Waits. E uma porção de outras. Mas as pessoas mencionavam e ainda diziam que a música ficou mais linda, que nunca pensou que podia ficar tão melhor, que entendeu coisas novas de uma música que ouvira muitas vezes antes. Mas ele não cantou a música. NÃO CANTOU, entende!”

Quando o silêncio começou a se espalhar a partir do alto da escada que vem da Tiradentes, soube que o cantor estava chegando. Apesar de parecer impossível, as pessoas se comprimiram um pouco mais para abrir uma célula vazia por onde ele se movia em direção ao seu lugar, abrindo em sua frente e fechando à sua passagem num só movimento fluído. Assim folgadamente passou por eles, instalou o banquinho no centro do praticável e sentou com o violão no joelho direito, como sempre. E assim sempre em silêncio, com o rosto coberto e a cabeça baixa, a luz dicróica discreta instalada pelo TUC não era suficiente para revelar sequer um traço por baixo do capuz, respirou fundo e no terceiro acorde reconheci 4+20, de Crosby, Stills e Nash. Isso sim é um presente!


Apesar do praticável e da luz dando uma pretensão de show à apresentação, estas duas novidades ameaçando uma situação frágil, ninguém estava preparado para tudo o que acabou acontecendo naquela noite.

Vi o vídeo muitas vezes, sentindo o violão perfeito e a voz interpretando corretamente cada canção. Senti alguma emoção a mais, também. Uma certa melancolia, uma saudade não sei de quê, uma alegria por estar vivo e ativo no meu pequeno mundo particular. Toda uma série de emoções de calma e certeza. Mas estar presente foi incomparável. Podia tentar transmitir toda a sensação, cansando o leitor com comparações e adjetivos ao longo de milhares de palavras. Só me resta pegar um atalho. Naquela hora me acreditei com alma, pois senti que uma alma tocava e cantava para a minha alma ouvir. Acreditem. Ou não. Ou vejam os vídeos e multipliquem a emoção por dez, pois telas, tubos e autofalantes não transmitem essa vibração com fidelidade.

Terminou 4+20, passou a mão esquerda ao longo do braço esguio do Del Vecchio bem usado e gasto, como se acariciando ou apaziguando e respirou fundo. Nestes segundos entre uma e outra canção, senti uma extraordinária sensação de estar no exato tempo-espaço daquele momento. Sensação de enorme poder, logo apaziguada pelos acordes de The Great Pretender, de Buck Ram, “Tão real o sentimento de acreditar... Too real is this feeling of make believe” nunca tocado com tanta verdade por aquelas mãos que deslizavam pelas cordas entre as posições, fluindo como cada frase desencadeando confissão e descoberta de mim mesmo.

Triste é ser apenas tridimensional. Triste é estar limitado por carne e matéria. Triste é cimento, aço e piche à nossa volta. Triste é precisar de palavras.

Ele não tinha terminado essa canção quando parou.

Havia muita gente na Galeria. Tantas quanto era possível. Ambas as escadas de acesso estavam tomadas e havia uma multidão ainda maior lá fora, querendo estar ali. Até o primeiro degrau ao nível da rua as pessoas podiam ouvir o Cantor. Além dali, as pessoas não eram atingidas pelo efeito hipnótico. Mas queriam ouvir. As pessoas que não escutavam percebiam o olhar embevecido daqueles que estavam dentro da galeria e precisavam dessa experiência. Então forçaram, empurraram e se comprimiram, até que o pequeno círculo vazio à volta do Cantor foi diminuindo. As pessoas languidamente distraídas foram empurradas e caíram sobre o praticável, desequilibrando e finalmente derrubando o Cantor.

Silenciada a canção, as pessoas da galeria ainda estavam saindo daquele estado de quase torpor e demoraram para perceber o perigo que corriam naquele espaço pequeno repleto de gente.

Gritos e movimento explodindo em todo canto, as portas do teatro não resistiram e foram abertas completamente, aliviando a pressão, as pessoas de fora se espalharam e deixaram que as pessoas na galeria saíssem para as ruas. Foi assim que ninguém morreu, não se sabe se alguém quebrou algum osso próprio ou de outrem, algumas pessoas se sentiram mal e foram se acalmar nos bares em volta e algumas portas de loja foram quebradas pela simples pressão de corpos. Se alguém morreu na confusão, ficou quieto para não depor contra.

O Cantor desapareceu na confusão, levando seu banquinho e seu violão.

O resto foi previsível, como previsto. Autoridades proibindo, politicalha fazendo lei para coisa alguma, pequenos transtornos tornados grandes acidentes, culpa deste ou daquele. Nada de novo na mediocridade social.

Uma semana se passou e um punhado de otários, eu incluso, foi esperar o cantor na Galeria. Disfarçando, pegamos uma latas de béra no Bar do Torto, circulamos o bebedouro e fomos sentar na mureta ao lado das escadas. Tinha mais gente passando do que o usual e todos disfarçadamente esperando encontrar o Cantor no mesmo lugar de sempre. Impossível mascarar a decepção de cada um ou o alívio de três viaturas de polícia na esquina de cima. Uma mulher com um microfone, um cinegrafista correndo atrás, procuram um jeito de dizer que a notícia de hoje é que não há notícia do Cantor Triste.

Outros perdidos sentados na mureta bem na nossa frente. O Orlando Azevedo, “Olhando Sem Medo”, com o olhar perdido no chão aos seus pés, precariamente segurando sua câmera com a ponta dos dedos, as mãos apoiadas nos joelhos, reflete a captura da alma dos coisas e seres e a profundidade de foco das emoções humanas. Está pegando o espírito da coisa toda.

Sentado na parede da lanchonete na nossa frente, um noiado de crack se incorporou naturalmente ao nosso pequeno grupo, a contragosto do Ulisses e do Sátiro. Disse que o conheciam por Micão, apelido adequado a um sujeito muito alto e magro, em permanente estado de síndrome de abstinência, eletrizado e com um vocabulário de quem já foi acima do normal. Uma dessas almas hipersensíveis nascidas para precisar desesperadamente sufocar, blindar, ocultar sua sensibilidade com qualquer droga ilícita ao seu alcance. Contou a vantagem de ter visto todas as apresentações do Cantor e, inesperadamente, descreveu de onde vinha sua mística.

“Ele foi o Cantor Triste, apenas isso. Não tem um nome, nem uma raça ou um passado. Não tem rótulos. Não é como o cara que matou meia família pilotando um aviãozinho estúpido e seguiu cantando; nem o outro que deixou o filho cair da sacada e compôs uma musiquinha lacrimogênea para capitalizar a tragédia; muito menos o velho roqueiro comedor com escândalos de paternidade no rastro de sua mega turnê. Ou o pedófilo assexuado enigmático, o fenômeno de voz flagrado fazendo sexo oral no banheiro público, a diva encontrada na banheira e outros mil. Nunca fará um dueto desesperado com outro cantor decadente que também está se afogando no esquecimento. Não há nada sobre o Cantor Triste. Canta na língua geral do império de plantão. Não tem sequer rosto. Não cobra nada. Não pede nada. Nunca falta e jamais se atrasa, pois sequer é esperado.”

Faz uma pausa para respirar, juntando as mãos na boca como se aspirasse um cachimbo imaginário. A mulher do microfone volta descendo a calçada, apontando o microfone na nossa direção. Antecipamos pretextos para evitar as câmeras, mas ela desiste quando repara no Micão, que continua cafungando as falanges e falando sem parar.

“Canta músicas de elevador, insossas trilhas sonoras de salas de espera e de todos os escritórios do mundo, daqui até a China. Não morrerá de aids, nem de overdose e não “está cercado por Deus e todo vil metal” (Belchior). Nunca será flagrado bêbado ao volante, nem vai se casar a cada seis meses e ninguém o conhece, pois “evita qualquer relação com pessoas de temperamento sórdido” (Jorge Benjor), que somos todos nós, afinal. E, principalmente, nunca vai precisar cantar para sempre a mesma maldita música que fez sucesso lá no começo de carreira. É o cara sem pressão, sem compromisso e sem lei, que contradiz tudo que é mais sagrado no negócio de shows.”
“Como separar uma música bonita das merdas que os intérpretes vivem? ‘Meu escritório é na praia’ e meu inferno é no pó. Porra Chorão, eu te amava tanto! Alanis parou, cansada do pop e de ser produto, para fazer música cabeça. Dali a pouco voltou, pois não tinha nada melhor prá fazer. Me serve aí outro Mac Music. Tantos cantores ordinários não tem sequer uma alma que preste prá vender pro diabo.”

Olhou para nós como se nunca tivesse visto antes e resmungou “... é! Tô sabendo que tô divagando”. Levantou, agitado, gritando enquanto fugia pelas escadas da Galeria. “Quer saber? Vão se ferrar vocês e Bobby McGee!”.
É o que dá, dar confiança para noiado.

E não aconteceu nada diferente naquela noite.

Nenhum ser mágico surgiu fazendo coisas extraordinárias em todo esse vasto planeta com mais de sete bilhões de pessoas. Ninguém filmou, gravou ou meramente testemunhou um eventinho inexplicável sequer. Ficamos apenas nós, os ordinários, com uma pressão subindo no peito e os olhos ameaçando marejar.


 

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Só uma placa na parede



O Agente Sentimental é aquele sujeito que veio para ajudar quem chora e acabou chorando também. Desta vez, está decepcionado com os órgãos públicos, organizações religiosas, polícia, secretarias, comissões, tribunais e tudo o mais, que fazem da sociedade um abominável caos abandonado à violência extravagante.


Só uma placa na parede.


Apenas paus cruzados numa torre.

Discursos vazios nos canais de TV

excrementam olhos e ouvidos com palavras bonitas.



E os velhos seguem explorados, presos,

maltratados pelos próprios filhos.

Armas, drogas e contrabando

enriquecem igualmente os bons e os maus.



Tudo apenas placa na parede.

Só uma cruz decorando a porta.

Já precisou deles, você que duvida?

E nunca, nada, coisa alguma aconteceu.



E a moçada morre nas ruas por ninharias.

As meninas criam inocentes sozinhas.

Todos acabamos num crime de trânsito

e a esperança morre na porta do hospital.



São apenas placas nas paredes.

Cruz vazia decorando parede nua.

Além delas, ninguém constrói nem faz,

não há conforto, cura ou ação.



Além dessas placas e cruzes,

todos acreditam no que não fazem.

Inércia fingindo ação e mentindo normas,

Esses felizes impotentes com salário.



Aquém das meras placas inúteis

ficamos todos por nossa conta,

sem fé e sem lei bovinamente nutrimos

quem leva nosso dinheiro e fica com nosso voto.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Andando muito ligado

Andando muito ligado

Se anda
Mais entendiado que
o baixista do Muse;
mais sem noção que
bombeiro em Santa Maria;
mais sem inspiração que
o Zeca Baleiro;
mais desconfiado que
marido de striper.

Ou anda
Mais perdido que
cego em tiroteio;
mais sem assunto que 
exobiologista;
mais anônimo que
um croner do Rolling Stones;
mais traiçoeiro que
tradução do James Joyce.

Ou até
Mais mentiroso que
orelha de livro;
mais previsível que 
um serial killer;
mais manjado que 
discurso de político;
mais inútil que
guardacosta dos Kennedys.

Ou ainda,
Mais inexorável que
pacto com o diabo;
mais falso que
a indignação do Bono Vox;
mais arisco que
pedófilo na internet.
É só o preço de viver ligadíssimo
nesse Século 21.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Não esquesão de min



Não esquesão de min

Fico morrendo de vontade de contar uma história que me fez chorar um dia.

Uma história que começou com um evento corporativo, naqueles meus tempos de engravatado alienado. Quando usava minha inteligência mediana e toda ilustração obtida às duras penas em escolas e livros para dar um jeito de aliviar a Receita, levar no bico um empregado e enriquecer terceiros. Dias Duros.

Vamos lá, disse o dono da empresa, vai lá com a gente! Você conversa bem.

Era um jantar com um diretor das Lojas P., que vinha decidir com quem ficaria o quinhão principal de certo artigo de interesse do meu cliente. Dependendo de nosso poder de sedução, todo mundo ia ganhar dinheiro.

O restaurante era ali no estádio do Coxa e a comida era farta e boa, mas sempre achei meio seboso desde que minha mãe costumava encomendar ali o cupim do almoço de domingo.

Fomos até o fim quando, ensebados e meio bêbados, o cliente puxou a mim e seu irmão,o gerente Alfonso, para um canto e mandou: Levem ele até uma boate e deixem ele bem feliz, está sózinho no hotel e a gente precisa comprometer ele.

Arrastamos o figura até o Metrô, onde os caras da portaria e os garçons receberam o Alfonso como se fosse um playboi curtido na noite.Tratado pelo nome, mesa de pista, bebidas servidas sem ninguém pedir. Eu nunca tinha entrado naquela boate.

Noite adentro os dois caras bebiam enquanto eu esquentava a mesma cerveja na mão. Alfonso pediu mulher para o garçon e apareceu uma para cada um. Juro que os dois já foram passando a mão sem cerimônia nas coisas das meninas, mas eu estava paralisado e conversava sobre tolices com a loirinha que me coube, sem tirar os cotovelos da mesa e perfeitamente sóbrio.

Nunca fui disso, não estava disposto a começar e fazia horas já achava que as coisas estavam indo longe demais. Isso de ganhar contrato na base da putaria é muito nojento.

Quando o diretorzão percebeu o meu jeito, fez troça e puxou a loirinha para si. Mostrar como é que se faz e essas coisas de macho de verdade.

E caiu de conversa em cima da menina. Foi dizendo que era de uma agência de publicidade, que estava escolhendo meninas para uma campanha, que gostou do tipo dela, que era muito bonita (e era), que era o tal e outros quês.

Com certeza era um cara com todos os talentos para chegar a diretor lá da corporação dele, devo admitir.

A noite seguiu desse jeito, eles garfiando as moças e eu olhando.

Lá pelas tantas, parece que o Alfonso não convenceu o cara a levar uma menina embora, então a loirinha veio até mim e disse que ia trocar de roupa para arranjar um programa e faturar alguma coisa na noite e se perdeu na homarada do Metrô.

A gente ficou vendo uns shows onde aconteciam umas danças que pretendiam ser eróticas. É engraçado como manter o espírito crítico e lúcido pode deixar a vida sem graça, às vezes.

Dali um pouco, volta a loirinha.

Prestem bem atenção agora.

Ela chegou do meu lado, agora vestindo um tomara que caia ou bustiê, sei lá, todo brilhante, falou bem assim; veja só, quando eu tinha menos idade essas chances não apareceram e agora surge uma oportunidade dessa, olha que coisa. Eu vou te dar meu endereço e voces me ligam amanhã, só não digam que me conheceram aqui, pois esse é o telefone de minha irmã e ela não sabe que eu trabalho na noite. Tá bom?

Antes que eu dissesse olha aqui menina, continua puta que aqui só tem canalha, ela botou na minha mão esse bilhetinho. Clichê de todos os estereótipos. Folha arrancada de caderninho recortada dobrando com a unha e escrito ibidem assim em caixa alta:

MODELO E MANEQUIN

FULANA DE TAL E TAL

RUA DE ALGUM LUGAR POR AÍ, Nº QUALQUER

BAIRRO MERCES CURITIBA TEL. 33 E TAL

E lá em baixo, pulando uma linha:

NÃO ESQUESÃO DE MIN


É esse aqui, que resolveu cair de dentro de um livro ainda hoje e trazer de volta a lembrança:
Meu amigo, se mulher assim não é a pessoa mais ingênua que existe! Já tinha ouvido dizer que todas são ingênuas, mas nunca acreditei.

Aquilo me bateu com uma chacoalhada, se estava um pouquinho bêbado, não estava mais. Aquilo me derrubou, me deprimiu e chorei mas ninguém viu.

Esse foi meu desastre particular. Provavelmente nenhum outro cavalheiro ali presente sentiria a coisa como eu senti. Mas a noite ainda reservava uma surpresa (adoro clichês de escritor simplório).

O show especial da noite apresentava nada mais nada menos que a mãe, uma loirona passadona, apresentando a própria filha, uma loirinha na flor da idade, num espetáculo de ardente erotismo. E era bom mesmo, preciso admitir. A menina se movia com graciosidade e segurança, enquanto sua versão mais antiga circulava em volta. Bem na hora em que ela utilizava o cabo de um chicote de montaria para uma função estranha ao seu uso normal, percebi uma movimentação estranha em cima de nossa mesa.

O Alfonso, bêbado e ensandecido, subiu na mesa e segurava entre as próprias mãos o próprio membro viril, gritando Olha aqui como está duro.

O diretorzão, olhava para a cena assustado. Eu levantei e levei as mãos para tirar o Alfonso de cima da mesa, mas havia aquela coisa meio mole bem no meu nariz. Gritei desce daí seu maluco e outras coisas que esqueci e soquei o doido de volta na poltrona. O cara ainda balbuciava a se justificar .

O alvo da malandragem, o tal diretor, nem vacilou. Com o porre milagrosamente curado, foi saindo e fui atrás dele. Dizia para mim o Alfonso é louco,o que é isso, é esse cara que vai gerenciar a nossa conta. O sujeito estava prá lá assustado, pois vai que até canalha tem seus limites. Eu desculpei e fui atrás até a calçada da Cabral, meti o cara num taxi e mandei pro hotel.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Meu nome é Pedro José Flores Mathias Tebinka Pinto de Carvalho Malanski



Muito Prazer!

Se alguém me procura: estou aqui!

Pedro José Flores Mathias Tebinka Pinto de Carvalho Malanski é a ponta do iceberg de minha genealogia e só o mais tenro e recente ramo duma árvore metafórica.

E quem carregar qualquer desses nomes pode me pedir simples pousada ou que eu desça ao inferno em seu auxílio.

Sou o resultado de centenas de encontros inesperados, mas sei exatamente de onde vim, sei precisamente para onde vou e me conheço por inteiro.

Por Pedro pode me chamar, se acaso nos vimos além de uma só vez, pois é nome leve e não me compromete.

O José foi invenção do padre que me batizou, agregando mais de um santo ou  decerto intuindo minha necessidade de fazer com as mãos, mas nunca integrou meu nome oficial.

O Flores teve minha bisavó celestina, Mariquinha, cabelos brancos até os pés, violão entre os braços, falando diretamente com Deus a balançar crochês delicados, absoluta e poderosa doçura. Lá atrás, carregava ela histórias de maçonarias em Morretes e derradeiras ações de caridade.

O Mathias ostentava minha avó natureza, tão Maria também, cabelos negros assim guarani, toda um cajado, enxada ou segadeira, rija e forte, moldando a terra e as estações para perenemente colher qualquer fruto, essa maga dos remédios e de todos os mistérios perdidos da natureza. Qual o seu mistério e qual seu destino se permanecesse em Liepzing seu antepassado judeu?

O Tebinka trouxe minha avó realeza, Cecilia, dama dos pães, doces, costuras e etiquetas, rainha das festas e comemorações, artesã de elaborados presépios e pessoas. Muito além em seu passado, um cocheiro do imperador austríaco olha para além do dorso de corcéis imponentes.

O Pinto de Carvalho não ficou em meu nome cartorial, que se fosse também o José seria como o de meu avô, denunciando esses judeus rebelados, fugidos primeiro de Napoleão, depois dos separatistas de Portugal e até hoje avessos à política.

Vigora sobre os outros o Malanski, de meu avô guerreador, enorme, para quem eu olhava e imaginava capaz de todos os atos de gigante.

Cada memória genética de cada um deles vibra em cada fibra de meus tecidos e ossos, gritando os eventos traumáticos gravados fundo em suas vidas.

É um efeito colateral da lucidez, recordar as experiências acumuladas de cada memória genética que me constrói.

Os amores, decepções, abandonos – ah! os abandonos! – erros e alegrias de uma hoste de homens e mulheres, talvez desde o primeiro lampejo de consciência de um certo peixe no mar primordial.

A maioria, coisa bonita, pois ainda eram jovens quando se reproduziam.

N´outras vividas, tinha outras nominações.

Pude até hoje viver sendo todas as raças da face da Terra, pois aquele que Sou migra eternamente e frui de cada conjunto biológico.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Lucidez

Tive um sonho esta noite.

Dele acordei com a boca seca, apavorado com a possibilidade de esquecer o sonhado.

Era um sonho em que eu lutava.

De todas as formas.

Às vezes vestido para a guerra, outras vezes quase nu.

Numa hora estava em uma montanha, depois num deserto brilhante e logo em seguida me agarrando para não ser levado por uma correnteza.

Tantas vezes era dia, outras tantas noite fechada e muitas vezes terra e céu todo gris. 

Lutava com uma longa lança, uma borduna gasta, depois com uma pistola antiga, em seguida com as mãos nuas e até com um estranho remo amarrado com um longo tecido, em cuja ponta havia uma bola que feria os inimigos à distância.

Havia homens e mulheres ao meu lado e sempre ficavam para trás ou seguiam muito adiante.

Os inimigos  eram máquinas e cães enormes. Eram demônios e coisas rastejantes. Vinham todos na tocaia e na traição. Estavam nos castelos e nas estradas, nos edifícios e nos casebres miseráveis. Por todo lado e em todas as formas que o sonho ilimita.

Sempre próxima, seguindo meus passos, uma mulher desconhecida gritava avantes e coragens, preemente e intensa.

Deuses! Vou lutar para sempre?

E era boa e feroz a luta. Braços nunca cansados do golpear, olhar sempre atento ao próximo.

Mas, contra o quê eu lutava, afinal?

Contra todas as trevas.

Pois posso eu lutar toda uma saga de Ulisses, grego tolo. Posso lutar tanto quanto lutou Harry Potter, ou todos os companheiros do Senhor dos Anéis, ou tanto quanto cada um dos miseráveis da Guerra dos Tronos, ou todas as batalhas de Alexandre, tudo isso tudo junto e mais qualquer outra que puder lembrar.

Não vou conseguir remover nem uma simples camada que aprisiona a minha mente ou a sua.

Nem a primeira malha de aço, sequer uma das muitas grades, quanto mais uma das inúmeras paredes, muros e fossos que mantém a lucidez anulada.

A luz, iluminação, lucidez.

Desde o momento de nascer e através de cada mínimo segundo de qualquer vida, tudo conspira para cobrir, aprisionar, limitar, obnubilar sua lucidez com miseráveis matemáticas, regras estúpidas, convenções sem sentido, compromissos inúteis, religiões sufocantes, ideologias e leis de escravidão.

Tudo espessando trevas que escondem o que é e o como é, só restando esse real. 

Emanado de um rei mesquinho e cruel, constrói nas trevas a realidade que lhe convém.

Posso seguir lutando por toda minha vida, numa saga que é a soma de todas as batalhas, não vou conseguir remover nem uma simples algema que impede você de abraçar a lucidez.

Compreender os movimentos dos astros e dos átomos, a motivação das massas humanas, a razão dos comportamentos, os ciclos intermináveis e os motos contínuos.

Saber com lucidez, simples assim.

Sem preconceito, doutrinação ou dogmatismo.

Luz que rasga as trevas, desarma e desfaz a prisão do real imposto.

Ver de verdade, com olhos de alguma coisa que é maior do que a alma ou o espírito, essas invenções do irreal, outra invenção do real.

Lucidez.