domingo, 2 de agosto de 2009

Sonho Antes do Fim


Sonho Antes do Fim

(abril/2001)

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Sonhei com o demônio a noite passada.

Estava entre turbas de mendigos invadindo jardins de colchões king size no meio da noite. Estava sendo sugado por uma megera magra com cada pedaço do corpo chagado de espancamentos, ela mesma prendendo em um armário um menino sem pés que chorava. A velha fechava a porta com força, forçando o toco da perna com força para dentro, dizendo "fique quieto, meu filho" e ele dizia "dói, mãe", o "dói" abafado e o "mãe" aberto por cada pancada na porta, e ela sorri para mim/demônio como quem se desculpa.

And the devil say. Pois falou em bom inglês, nova linguagem dos céus, bem ali entre as pessoas estranhas que me acolheram depois que minha casa foi incendiada, mas não lembrava nada daquilo. Disse depois de mandar um forte abraço a todos vocês. Disse que sempre fomos enganados.

Enumerou cada um de vocês, nome por nome todos vocês, a quem deveria transmitir esse abraço apertado e dizer, enquanto suas palavras eram ilustradas por cenas de banhos de chuveiro no meio de minhas avós quando jovens de corpos firmes e desejáveis carnes nuas roçando úmidas a minha pele, entre brancas motocicletas em dias de chuva, depois de penetrar uma virgem enquanto ela urinava como um rio quente, acordando assustado com o gozo, disse enfim que sempre estivemos errados quanto ao bem e mal, céu e inferno e essas coisas.

Disse que eu sabia por quê.

Posso estar doente. Posso saber.

Disse bem claro para que não esquecesse ninguém, vocês e todos os outros. Se esquecesse alguém, não faria mal. Ninguém é importante para o demônio. Ele parece gostar de quem é diferente. Disse que ele mesmo era um bosta, antes que eu disesse o que pensava por ele ter surgido assim no meio de decadência, ma só assim provou quem era.

Disse de um jeito extremo de dizer.

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Minha mãe não deu prá deus,

práele se dizê meu pai.

Iria falá cum ele, se pudesse.

Se pudesse ir pru céu.

Mas num conheço ninguém lá.

Iria pru inferno,

onde conheço todo mundo,

onde estão todos meus amigos.

Onde sei, não tocam beatles.

Como num tenho pai nu céu.

e todos os que tive morreram,

vai que pai nenhum me sirva mais.

Deixa prá lá sê filho.

Pois minha mãe deu prum homem

igual como qualquer um

e Deus não tem nada comigo.

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Estou são. Vocês e os outros é que estão doentes. Doloridos até necrosar os sentidos. Na orfandade. Dor de estar aqui sem eira nem beira, coisando esse mundo como se não fosse daqui.Seus sentidos mortos não estão nem aí para o sentido das coisas, ficam insensíveis e tudo. Gostam, sim, de cortejar a morte e de matar sem mais nem menos, nem por capricho. Disse... alguma coisa tão importante... tão difinitiva...

Acordei assim por isso. Vendo aquela parte dela que é dúvida escondida. Como o objeto guardado num envelope de papel pardo tão grosso e resistente quanto pequeno e colorido por impressora a jato de cera. Encaixado entre as páginas dum livrinho de reza que um dia fora rezado por seu pai já falecido. Acomodado entre outros envelopes, tão engrossado por lembranças que os cantos rasgaram. No meio de agendas antigas, todas parecendo tão infantis quanto decoradas por modismos ultrapassados. Tudo dentro de uma caixa de sapatos. Na verdade uma sandália branca bonita de usar e ficar parecendo uma deusa grega, pelo menos era o que achava quando enrolava as tiras na perna, usadas poucas e sacrificantes vezes por causar ferimento no dedo mínimo. A caixa, enfim, soterrada por blusas velhas e outras roupas de inverno, enfiada fundo no canto da prateleira mais alta do guarda-roupa, encerrada na porta raramente aberta. Lá onde pensava estar esquecido.

Mesmo depois da luza apagada e da porta do quarto bem fechada, de ir para a sala e ligar a tevê, mesmo assim não esquecia. Ou, de tanto ritual mais lembrava.

Até quando chego diferente dos outros, como uma aproximação pressentida desde o segundo em que saio do trabalho, vindo até surgir pela rua e ranger o portão para entrar. Mesmo quando sorrio, abro os braços e beijo igual não a visse a um século, intenso como se houvesse cruzado um oceano só para estar com ela. Mesmo quando geme aos meus afagos. Mesmo assim recorda o sonho antigo. Muito especialmente aquele.

Não que quisesse. Achava que estava esquecido, achava mesmo que podia ser guardar daquilo. Tentava de todas as maneiras, mas com a letra dessa canção a memória ocultada, morta e reprimida, voltava a incomodar.

às vezes, precedida da insatisfação com tudo o que fazia. Mesmo quando fazia o melhor amor e tinha tudo o que queria ao seu redor. Sempre arranjava uma desculpa para não gostar mais, bebendo pessoas como se fosse sede a matar e, saciada, soterrasse o poço para ninguém nunca mais. Logo depois, fazia de si o que queria, amando qualquer outro que não fosse o mesmo de sempre.

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Menina, quase mulher, ainda pouco mulher, apesar de perto dos quarenta. Ainda não.

Gostava daquele da lembrança. Gostava sem saber do quê. Da criancice dele, bobo de dar dó. Tão criança como quando deitado sobre o braço, apoiado na mesa do bar, no meio das latas de cerveja que podiam entornar sem medo, de tão esvaziadas. O cabelo negro grisalho, escorrendo sobre o tampo. A camisa listrada com o punho dobrado duas vezes empapada de suór nas axilas. A felicidade dele, festejando tão a seu modo, com maconha e bebida, a carteira de motorista recém conquistada. Ela olhando maternal para ele e para a lata da vez meio bebida, girada entre os dedos e a cabeça rodando de fumo, feliz por ter ajudado a conseguir. Gosta de se fazer mãe dele e quando a mãe dele dizia que ela era a última esperança do filho se regenerar, parar de vez com as porcarias e pensar na vida. A pobre mulher olhava para os dois com os olhos molhados e as mãos postas como quem dá graças

E como ela gostava de coisas que só ela sabia gostar. Como distribuir bisnagas de seu adoçante preferido por todo lugar aonde ia. Comomarca registrada. Sempre sabendo exatamente onde estavam guardadas em cada lugar. Seja na casa onde vivia, lá com o marido viado/ausente/insosso/compulsório/adequado e os três filhos viviam. Na casa da mãe, ansiosa/metida/suscetível, onde ia só aos sábados à tarde para intermináveis reuniões de família. Na casa dele barrigudo/amante/comiserável, guardado na cristaleira como num panteão de honra. E ela, insaciada/suicida/gorda/devaneante e mais, represada/vazia e tudo, agindo sempre como se pertencesse de verdade a cada um desses lugares e levantar e ir ela mesma apanhar no armário ao lado dos copos, no armário ao lado dos temperos, na porta da geladeira ou na cristaleira, sorrindo para todos aquele riso que sabia o mais infantil e cativante igual com quando era menina. Sempre levando na bolsa uns envelopes de adoçante em pó para o que desse e viesse.

Gostava, também, de saber que tinha uma toalha só sua, roupão de banho e umas calcinhas esperando ao lado de um sabonetinho aberto para ficar tudo cheiroso, num guarda roupa de solteiro no bairro de trabalhadores lá adiante. Segue em frente pelo caminho dos elefantes que passa por trás de sua casa, que não tem erro. Ou ter para lembrar do seu desodorante caro predileto e do condicionador apropriado ao tipo e cor de seu cabelo, esperando num armário de banheiro lá para os lados da periferia. Lembra da cama simples de solteiro onde ninguém imaginaria que pudesse deitar, mas onde se refestelava sob o edredon que ela mesma havia comprado para os dois, iniciando a vida a dois que sonhavam sonolentos no torpor do depois. Refúgios secretos, vida paralela para viver a hora que quisesse e pudesse dar uma fugida. Aquele homem estranho e perigoso, bêbado a fazer de todos os bares via sacra obrigatória, barrigudo de calça abaixo da cintura, de vida enrolada, maconheiro contrário a todos os valores e para os quais fugia. Homem tão diferente dela.

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O que sabem vocês, quadradinhos babacas e inúteis?

Por gostar, ainda guardava uns pedacinhos de papel aparentemente sem importância, sem o nome dele nem nada. Só ela sabia por que estavam ali e qual o significado daquele específico sinal. Como o folheto de trava anti-furto pego da mão de uma criança, no trânsito, naquele dia quente e suado de fevereiro a caminho do motel, quando era na academia da associação que devia estar. Bem dobrada, amarelada, ainda recendendo medo de ser descoberta, o prazer de sentir o saco dele, mole e grande, batendo em sua bunda enquanto. Aquela carteira de aprendiz de motorista marcando o dia derradeiro para aquele dia quente e suado de fevereiro.

Tem coisa que vale a pena gostar. Tem coisa que vale a pena fazer justo por não gostar. Se não tem gostar, pode ficar tão infeliz que deseje morrer. Aí é morrer ou mudar. É desgosto.

Agora acontece de ler os poemas que escrevo. Ela, tão segura de que o fim havia chegado há muito tempo e só estava se estendendo indefinidamente à sua frente sem nenhuma esperança de mudar ou melhorar. Logo ela, que havia encontrado o fim a meio caminho da vida e nada mais importando. Logo naquela altura, depois de ter feito tanta coisa estranha, errada e suja. Depois de se entregar no escuro da praia, de comer a carne onde colhe o pão, de chegar ao ponto de nem caprichar na credibilidade das mentiras para suas ausências. Logo agora! Apareço do passado, meio como filme assistido muitas vezes, dizendo assim essas coisas com gosto de para sempre.

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Digo não me deixe nem um segundo,

só fique assim comigo, quente e meiga,

pois nunca fiquei tão só como agora.

Era assim, sempre meio, toda vida e não sabia.

Precisei saber como é ser completo,

comparando antigas meias vidas

com a vida inteira de agora.

Sou meio, metade, incompleto e pouco,

se não fica assim comigo, fé e força.

Faz-me todas as faltas, deixa todos os vazios,

quando não está todo momento comigo.

Nada faço, digo ou vivo, quando está distante.

Deixo incompleto, não tenho a dizer,

vivo tudo pela metade, meia vida, todo só.

Sei que tenho amado errado,

confesso e professo querer amar direito.

Tenho amado quase predatório,

vingativo, selvagem e tolo.

Até aqui nunca amei direito,

nem um pouco.

Mas achava que amava tudo

perfeitamente e todo,

mas não amava nada nem coisa nenhuma.

Faltava tudo no amor que sentia,

doçura e carinho em cada gesto,

paixão que afaga eternamente.

Faltava compreender.

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Calar essas vozes dos sonhos. Fazer gostar sem mais desespero, sem olhar para trás. Assim devia ser. Sem nenhum outro lugar onde quisesse ir, ou onde houvesse deixado adoçante e outras coisas, esquecendo as roupas nos armários imundos, cheirando guardado, com pessoas erradas, pelos motivos errados, por qualquer motivo.

Era tudo que possuía, assim possuída por qualquer um. Mensageiro de saudações do diabo ao mundo infernizado, esperava por mim e que todo o passado fosse ilusão, vivido a matar o tempo até que chegasse quem dissesse palavras assim, arrebatadas por amor cego. Enquanto não chegava, que viesse qualquer um, sem lógica, critério ou motivo. Qualquer coisa e todas beirando o desespero de quem cansou de esperar.

Agora resta viver entre as memórias dela, ainda visíveis nas cicatrizes longitudinais em seu ventre, donde retirou marcas de gestações inconseqüentes mas não evitou filhos de outros homens, onipresentes pelos cantos da casa e rugas da pele. Sujeitos ausentes, liberados das exigências da paternidade pela contínua dança das cadeiras. Tantas pegadas deixadas por aí, canhestras e lacônicas. Horas de fita VHS por onde se esgueiram. Peças de roupa, ferramentas, objetos e coisas gastos por muito uso, guardadas nos armários e gavetas, como se aguardando a volta dos tempos de desesperar.

Trafego entre essas memórias como um sonâmbulo. De vez em quando ouvindo uma delas escapar no meio de uma conversa qualquer. Para juntar mais um homem aos tantos de sua vida, cada outro a mais comprovando ser apenas mais um. Qual teria deixado algo pelo que voltar? Dentre tantos, qual é real?

No fundo, com medo. Desejando que nunca tenha sido feliz. Que não disponha de momentos merecedores de lembrança. Torcendo para não estar andando pelas mesmas pegadas e cometendo os mesmos erros.

Pode dizer que sou fraco, pois fraco devo ser. Tenho medo de lembranças, não havendo covardia maior. Tenho medo de ser apenas um louco, sedado, amarrado numa cama de hospício, alucinadamente sonhando uma vida perfeita e apavorado com a possibilidade de despertar.

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